domingo, 28 de novembro de 2010

Piada sem graça



Leslie Nielsen morreu na madrugada de domingo e a semana começa sem graça. Quase todas as semanas começam sem graça, mas o cinéfilo é paga pau da sétima arte e quando morre um astro, ficamos cheio de dor.   

Coincidências a parte, na tarde de sábado revisitei Creephshow, rara ocasião em que Nielsen faz papel de vilão e mata Ted Danson na praia com o movimento da maré.

Morreu o ator que os nossos pais e avós nem sempre lembravam o nome e nos almoços de família costumavam chamá-lo de o velho da cabeça branca que fazia aqueles filmes engraçados. Já vi gente confundir o Leslie Nielsen com o Steve Martin.

Nem todo mundo sabe quem é Leslie Nielsen, mas todo mundo conhece Frank Drebin, o policial deliciosamente estúpido que detonava a recepção da rainha Elizabeth, passava uma lixa na bunda de um cadeirante e num grand finale de trilogia, arrebentava aos pontapés a noite do Oscar apenas para manter a paz nos EUA.

Nielsen garantiu muitas risadas e marcou piadas no coração de todos como o Drácula de Mel Brooks, o médico de Apertem Os Cintos, o Piloto Sumiu!, o agente Dick Steel, o Mr. Magoo e o padre Euposso. 

Nem só de risadas a carreira do homem foi construída e ele enfrentou alienígenas na ficção cult Planeta Proibido, não impediu o triste Destino do Poseidon e foi assassinado por Barbra Streissand em Querem Me Enlouquecer.    

A cara mista de idiotice e benevolência de Lesie Nielsen está na galeria nostálgica da Sessão da Tarde onde guardamos os peitos de Elvira, Ferris matando aula, as bruxas inglesas chefiadas por Anjelica Huston, Indiana Jones, o DeLorean cruzando o tempo, E.T. e a bicicleta, Sr. Miyagi, Slot e o Tom Hanks quando era engraçado.

Se bem que o Hanks continua engraçado sempre que disfarça prisão de ventre com seriedade. O humor no cinema anda caindo pelas tabelas, mesmo com os esforços de Steven Seagal, Julia Roberts, Sandra Bullock e Robert Pattinson.  

Voltando aos comediantes assumidos, tomara que as gerações futuras desfrutem de um próximo Leslie Nielsen saído desse balaio incansável de novidades instantâneas. Nielsen não nasceu comediante, tornou-se nos anos 80, num seriado de televisão que deu origem aos filmes da série Corra Que a Polícia Vem Aí

Lá todo dia tem astro, todo pelego ganha Oscar e comediantes então, explodem aos borbotões. Quem sabe um deles não garanta risadas quando embranquecer os cabelos, usando da sutileza de Nielsen, imortalizado antes mesmo de morrer pelo crítico certeiro Roger Ebert, com o honroso codinome de Laurence Olivier das piadas.  

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Uma simples continuação e algumas emoções tardias



REC 2

Quem lembra da repórter Angela Vidal, aquela que estava rodando um programa noturno com os bombeiros de Barcelona e entrou de gaiata no olho do furacão, durante uma misteriosa epidemia ocorrida em um prédio velho?

Angela sobreviveu? E o que era a tal epidemia do enervante REC?

Assisto o segundo filme e corro para a internet me deparando com várias críticas negativas sobre esta continuação, algumas até repudiando a solução dos mistérios do primeiro filme. Os detritores interessados em saber qual o problema do padre que morava na cobertura e sua relação com a tal menina Medeiros levantaram-se em paus e pedras, reprisando um fenômeno conhecido: o primeiro filme foi tão superestimado que teve gente esperando a mesma carga de novidade deste segundo.

Sentaram bonito todos os que esperaram aquele caso raro de sequência que supera o filme original, pois REC 2 é uma cartilha explicativa que esclarece os pontos de interrogação do primeiro filme, um simpático e inovador fenômeno cinematográfico que disparou os batimentos cardíacos de meio mundo, inclusive deste que vos escreve.

O cenário é o mesmo, a receita também. Os diretores seguiram a cartilha e realizaram um filme satisfatório com as mesmas fórmulas. Um grupo de resgate entra no prédio em busca de sobreviventes, novamente com uma câmera na mão e tome-lhe chinelo, grito, correrias, sangue, tiro e o bom e velho desespero coletivo, coisa que funciona bem desde os filmes catástrofe de Irwin Allen da década de 70.

No auge do falar mal, ninguém reparou na sutileza das novidades: o aparecimento de dois pontos de vista diferentes da mesma tragédia, um do grupo de resgate e o outro de três adolescentes burros que entram no prédio onde começou a confusão toda.

Aumentaram também o mal onipresente dentro e fora do prédio, gerando aquele clima tremendo de desconfiança onde todos são suspeitos e as aparências, como sempre, enganam todas as possíveis vítimas e os heróis equivocados. A ameaça assume proporções quase épicas em história, por mais que o roteiro demonstre algumas crateras, e em ambientação, sem perder o compasso da tensão.

A resolução do mistério só poderia ocorrer em meio a claustrofobia da escuridão, eterna convidada dos filmes de terror e aqui, pobremente iluminada pela visão noturna de uma câmera, mesma chave do fim do primeiro filme.

Quem merece umas boas ofensas é a distribuidora nacional do filme, que em pleno estado de burrice, denuncia a brincadeira no subtítulo da capa do DVD.

Após escrever sobre esta continuação, mexo nos meus textos antigos sobre cinema e descubro emocionado um entusiasta que me fez assistir REC, o saudoso amigo Felipe, que na época residia em Porto Alegre e me deu um telefonema, cheio de purpurina e êxtase: 'Vinny, eu acabei de assistir REC no cinema aqui e por favooooooooooor, tens que assistir!'.

E lá fui eu, metido a galo, assistir o primeiro filme com o aval do Lipe e a insistência do Edu e do João, que trabalhava comigo. Os rapazes acertaram em cheio e eu dormi uns dois dias com a luz acesa por conta do primeiro filme.

Em breve fico sabendo do Edu se ele gostou da continuação. Para falar com o João que hoje mora em Camboriú, a internet salva.

E para o Lipe, que aos poucos definhou e perdeu a joie de vivre, deixando meio mundo sem telefonemas risonhos, resta uma boa oração e a saudade.

domingo, 14 de novembro de 2010

O filme dos sonhos



Lá pelas tantas, Leonardo DiCaprio pede para Ellen Page criar um labirinto e então Christopher Nolan desafia o espectador a encarar o seu próprio labirinto, um roteiro que levou dez anos para ser afinado e reescrito infinitas vezes para chegar ao que estamos assistindo, uma reciclagem magnética e bem realizada de velhas fórmulas, com a sabedoria de Nolan, um cara que em breve encontra o caminho da roça e define sua identidade estética.  

A Origem tem uma linha narrativa cheia de mirabolâncias e todas fazem sentido quando agarramos as infinitas pontas com muita atenção, esperando a junção no final. É a história dentro da história, meio cartilha explicativa sobre os  mecanismos do inconsciente, intercalado com cenas de ação e efeitos de tirar o fôlego. Entram no caldeirão Phillip K. Dick, mitologia grega, artes plásticas, xadrez, George Lakoff e um caminhão de referências, pequenas malandragens que permanecem até os minutos finais para criar pontos de interrogação na cabeça de quem assiste e estimular a criação de diferentes teorias em mesa de boteco. 

Está muito longe de ser onírico e viajão, como falaram por aí. Onírico mesmo, ao pé da letra só o Lynch, e com certeza o Jodorowski. Esses são os caras que colocaram sonhos e pesadelos em celulóide. Nolan não faz nada disso e organiza a história sem dar muita margem para a psicodelia. Nem o sexo, um elemento forte no mundo dos sonhos, teve chance de participar. A subversão é delicada.

Um vislumbre desta trama já estava em Amnésia, que parecia ser sobre o cruzamento de sonho e realidade, força motriz deste filme cheio de elipses e reviravoltas inovadoras que lutam para escapar dos clichês e transformar a realidade na inatingível matéria dos sonhos, bagunçada e invadida com naturalidade por pessoas normais. Para vivê-las, Nolan escolheu um elenco condizente com o espetáculo.   

Di Caprio é Cobb é o anti-herói, tentando refazer a vida, remoendo um amargor semelhante ao de Ilha do Medo. Ellen Page é Ariadne, com a mesma função de sua antecessora grega na história de Teseu.

Joseph Gordon-Levitt, Dileep Rao e Tom Hardy ajudam a formar o dream team com simpatia. Cillian Murphy é o objeto de desejo dos invasores de sonhos. Ken Watanabe é o causador da história. Na lanterna, Michael Caine aparece em ponta como o senhor da razão. Tom Berenger é o executivo suspeito, Pete Postlethwaite é o moribundo e Lukas Haas pode ser visto no começo.

Marion Cotillard é o mal absoluto até no nome e tenta colaborar com a emoção em um filme que é todo razão. Brincadeira a parte, Cotillard está em cena e Edith Piaf está na trilha sonora cantando Je Ne Regrette Rien, cuja letra salva os personagens de lembranças e acontecimentos que precisam ser esquecidos.

Enquanto diretor, Nolan é um artesão excelente em revolucionar o jeito de contar uma história e fazer muito dinheiro de forma inteligente. Pra chamar Nolan de Kubrick, só na base do faturamento. Depois do sucesso de Batman, ele é menina dos olhos da Warner, que baixa as calças para o rapaz.

A Origem é apenas um projeto pessoal realizado na plenitude de um orçamento gigantesco, resultando num entretenimento pomposo e divertido desde seu nascimento, quando a Warner de olho no dinheiro, adiantou a trama e inseriu em todo o mundo a idéia de que este era o melhor filme da década. 


E como cada década tem seu fenômeno, este já foi imortalizado.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A Hora da Porquice (toda a minha fúria)


A porquice... oh, a porquice!
Mais suíno que o remake de Haloween, um sacrilégio em celulóide.

Satisfatório só visualmente, de tudo que é jeito. Elenco cheio de gente bonita, fotografia estilosa e pirotecnia pra encher linguiça. Coisa feita para a nova geração entender, coisa que é um chute bem na costura do saco.

Quando a nova geração quiser conhecer mitos, que vá a luta e force o cérebro. Assista os clássicos e pare de dar risada da precariedade dos efeitos antigos.

O roteiro ruim que nem esporro de professora de matemática, oferece apenas a perversão de uma idéia originalíssima surgida nos anos 80 e prostituída em 2010 por seu criador Wes Craven. Sinceramente, Wes foi muito mais feliz com os remakes de Quadrilha De Sádicos e Aniversário Macabro, Viagem Maldita e A Última Casa, respectivamente.

O novo argumento saiu do intestino de Wesley Strick, do cérebro é que não foi nem a pau. Em dias melhores, Strick roteirizou Desejos, Cabo Do Medo, Aracnofobia e Lobo.

Aí ele perdeu a razão e também roteirizou A Casa De Vidro e Doom. Até hoje ele não recuperou a sanidade e o que vemos em cena é a mistura de quatro finalistas dos quinze esboços rabiscados por Strick para este remake. Cheio de burrice, o cara limou até o pai meganha da mocinha, um dos heróis da trama original.

Terror não tem. Nem clima. É um filme limpinho e honesto, com a besteira do susto mútuo. Mãe chegando por trás de filho, amigo surgindo por baixo do outro, cagaços rasos e previsíveis que puxam o pé sem a ousadia de puxar para baixo da cama. 

Deveria ser mais um prequel contando a história de um dos grandes monstros do panteão do horror, o imortal Freddy Krueger. Sua história aparece apenas no final e impressiona de forma grotesca porque se aproveita de maus tratos infantis. O remorso dos jovens perseguidos em pesadelos por Freddy, graças a atitude criminosa dos pais, é de envergonhar a mãe do guarda. 

Fuzilamento pro elenco é pouco. Rooney Mara é a Nancy toda depressiva, dark de boutique. Kate Cassidy, um projetinho de Charlize Theron mal aproveitada por ser a única gostosa do filme e não brinda nenhuma cena com trajes mínimos, outro estupro de uma regra sagrada do filme de terror. Kyle Gallner, Thomas Dekker e Kellan Lutz contabilizam as vítimas masculinas. Clancy Brown é o pai feroz em dobradinha com Connie Britton, a cara dura que não consegue expressar pavor. 

O astro principal virou um coadjuvante. Reduziram o Freddy a pó de traque, com maquiagem pobre que deixou o rapaz com cara de lagartixa. Jackie Earle Haley foi o infeliz escolhido para usar o suéter do Fluminense e a luva de navalhas depois que Billy Bob Thornton fugiu, com razão, do filme. Jackie só meteu medo em alguém como o pedófilo de Pecados Íntimos. Aqui ele é um nanico desconexo, um monstro apático. 

Para o elenco dos clássicos, os produtores ofereceram uma participação a John Saxon, o pai da Nancy no filme original. Robert Englund que é bom, o primeiro Freddy, não foi considerado nem para o papel ou pontinha foi oferecida. É o primeiro filme sem o cara que participou religiosamente de todos, incluindo a série de televisão de 1988.

O pesadelo é na rua Elm e o nome da rua nem é citado no filme. O culpado pagante de tudo é Michael Bay, que deveria enfiar o rabo entre as pernas e continuar produzindo só filmes mirabolantes e divertidos com carros robóticos e deixar o terror de lado para sempre

Tão empolgante quanto uma reunião dos Vigilantes do Peso, o filme me fez andar de um lado pro outro na frente da televisão, torcendo pra acabar. A hora do pesadelo só começou quando constatei que meus cigarros é que estavam acabando.

Sorrisos malvados


Kick-Ass é um filme divertido e empolgante. De original não tem nada, mas merece aplausos pelo status de gênese de uma nova tendência cinematográfica que vai gerar uns 10, com azar, talvez uns 30 filmes iguais a ele.

Agradável ao extremo, por mais que o quadrinho não esteja adaptado em verso e prosa, fato relevantíssimo que causou a fúria dos fãs extremistas, sua grande piada redundante segura o riso até o final: os fracassados querem vingança, é a vez dos desiludidos conquistarem o seu lugar. Pessoas normais arrombadas pela vida resolvem bancar os paladinos da justiça. Alguns para vingar dores, armados até os dentes e treinados friamente para tal propósito e outros totalmente sem jeito para a coisa, apenas para trazer um pouco de emoção à pasmaceira da vida.

O filme gerou controvérsias moralistas pelo mundo. Motivo: o personagem Hit-Girl, uma menina de 11 anos metendo facadas, tiros e apanhando de brucutus maiores que ela. Não pega bem, vá lá.

A pequenina Chloe Moretz, a Hit-Girl, é uma beleza de atriz mirim, enche o filme de vida e atropela os outros atores com estilo. É uma criança falando palavrão, botando pra quebrar e o nosso lado perverso acha muita graça disso. Nos resta torcer para que a jovem Chloe não padeça da maldição que ronda as crianças de Hollywood, aquela que sumiu com Macaulay Culkin, Abigail Breslin, Haley Joel Osment e recentemente, Dakota Fanning.

Aaron Johnson é um protagonista fácil de se gostar. Christopher Mintz-Plasse continua sua ascensão desde que o mundo babou pelo simpático McLovin de Superbad. Mark Strong é o vilão da vez, friamente perverso e Lyndsy Fonseca, a paixonite enviesada do protagonista, é uma gostosura.

O meu querido Ass-Face Nicolas Cage foi convidado. Enquanto ator, uma tragédia ambulante, cada vez mais famoso por aporrinhar os produtores de roteiros adaptados dos quadrinhos para participar de qualquer coisa. Cage traz o fracasso escrito na testa e o fato contribui para a postura do seu personagem. Para quem não percebeu, o herói Big Daddy tem a mesma entonação de voz do Batman televisivo dos anos 60.

Michael Rispoli é o chefe dos capangas burros do vilão, outro achado em cena. Elizabeth McGovern aparece tristemente para morrer nos primeiros minutos pela segunda vez. No remake de Fúria De Titãs, ela padece da mesma sina. E se alguém aí lembrar dela em Era Uma Vez Na América e Na Época Do Ragtime, ganha um beijo na boca.

Amar loucamente o filme é acariciar uma faca de dois gumes. Se por um lado, ele é moralmente repreensível, de outro ele é fantástico e desgraçadamente cômico. 

A violência, a amoralidade, o sangue e as piadas de salão me agradam muito, quando bem arranjadas em cena.

Sua intenção é divertir com baixaria e consegue com muita eficiência, dominando o humor negro pelas rédeas e usando referências de outros filmes e quadrinhos de heróis. Um ouvido treinado vai reparar acordes que lembram John Williams em Superman e Hans Zimmer em Batman na trilha sonora.

É pra descontrair, por mais que suas piadas envolvendo crianças e armas passem raspando pela garganta. Tem algo de errado aí, mas se o lance é achar graça, eu embarquei no bonde.

domingo, 7 de novembro de 2010

Woody, eu estava morrendo de saudades



Assistir Tudo Pode Dar Certo é encontrar um velho amigo, descansar a cabeça no ombro conhecido. Quando Woody Allen não está na Europa desmembrando seus filmes antigos com um elenco alheio ao seu universo, volta para NY só pra bater aquelazinha. Curioso é perceber como sua maldade atual é disparada em tiros com o maior calibre possível.

Filme feito com dinheiro europeu e rodado na velha NY, onde Woody bancando a dama ressentida em entrevistas, prometeu jamais retornar porque os americanos não financiavam e nem entendiam mais os seus filmes. 171 puro, afinal Woody não é idiota. Para quem é fã da fase nova-iorquina, o filme é um presente. Sentida é a ausência de Woody como o neurótico supremo.

Larry David é um excelente ator, mas destoa e exagera em caricaturar Allen. Se ele resolve aparecer, defenderia com brilhantismo e sutileza o extremo nervosismo do tipo que aprendemos a amar. Ele deveria dar a cara a tapa e botar o alvo no peito, pra deixar a coisa toda mais gostosa.

Você já conhece o caminho. Filosofia, existencialismo, mau humor, judaísmo, sexo, vida, amor e morte. Só faltou o outono. A originalidade espoca na crueldade latente para subestimar os faroleiros que assistem os seus filmes. É uma sacada tremenda, pura esperteza. 

É a história do neurótico pé no saco metido a sabichão que conhece uma garota gostosa e burra e de repente, o texto torna-se uma delícia enquanto revisitamos cada movimento e palavra. Pedras são atiradas em tipos étnicos e piadas cruéis e funcionais sobre arte e intelectualidade são contadas. A voz de Allen calando seus críticos, dizendo que é isso que sabe fazer, então é melhor chupar o dedo ou engolir seus filmes, c'est fini.

Pecado mortal é dizer que o filme é clichê sem saber que se trata de uma idéia adormecida. Seu roteiro nasceu nos anos 70, quando Allen tinha o desejo de colocar Zero Mostel como protagonista. Em 77, Mostel bateu as botas e o texto ficou de lado. Ressurgiu tardiamente e passou meio batido, porque conhecemos esse universo de trás pra frente. 

No elenco, enquanto musa passageira Evan Rachel Wood é a vítima que se apaixona pelo carrasco enchendo a tela de tesão. Mais tarde, será a criatura voltada contra o criador, e a menina faz bonito, não deixa a peteca cair.    

Patricia Clarkson também foi convidada para viver outra metamorfose, afinal o filme é feito disso. Numa explosão cômica, ela deixa de ser Blanche DuBois e vira Diane Arbus, surpreendendo Ed Begley Jr. como o ex-marido pateta e caipira, que abandona o verniz de macho alfa para tornar-se homossexual.

Michael McKean, Lyle Kanouse e Adam Brooks são os amigos com uma paciência bíblica para aturar o neurastênico intelectual. Henry Cavill é o sexual Randy e Jessica Hecht é a mediúnica Helena.

Quase ninguém parou pra notar que o filme não é sobre intelectualidade. Parece mais uma fábula com final bonitinho, como aqueles filmes antigos de Eric Rohmer.

Whatever Works, ao pé da letra, significa que tudo é válido, qualquer coisa que vier é lucro na hora de repaginar uma vida sem graça.  E para um autor em estado de graça, tudo é válido na hora de fazer cinema, até mesmo pregar uma moral bem amoral só para divertir.

sábado, 6 de novembro de 2010

Jill Clayburgh


Cria do teatro, Jill Clayburgh fazia parte de uma geração de atrizes que ganhou os palcos nos anos 60 em peças que retratavam os ideais feministas. Esteve ao lado de Marsha Mason, Carrie Snodgress e Ellen Burstyn. Começou muitíssimo bem. 

No cinema, seguiu empunhando a bandeira nos anos 70 ao lado de Meryl Streep, Diane Keaton, Glenda Jackson e Jane Fonda, santas padroeiras das mulheres independentes e obstinadas, dispostas a enfrentarem o mundo e os machos sozinhas.

O papel que a conduziu ao estrelato e rendeu a primeira indicação ao Oscar, é o da divorciada recomeçando do zero em Uma Mulher Descasada, inspiração máxima do seriado Malu Mulher, com Regina Duarte. 

Segundo a Entertainment Weekly, Jill era uma das 25 grandes atrizes de todos os tempos, deixando performances inesquecíveis em O Expresso De Chicago, La Luna, Esta é Minha Chance, Gente Diferente, Hanna K. e Correndo Com Tesouras

O primeiro filme que assisti com Jill foi o doloroso O Preço do Sucesso, que muito antes de Requiem Para Um Sonho, já esmiuçava as dores de uma mulher destruída por anfetaminas. Das madrugadas do Corujão, fica a lembrança de Jill interpretando duas atrizes: Carole Lombard em Os Ídolos Também Amam, acerca do romance de Carole com Clark Gable e Jill Ireland, contemporânea e xará, esposa de Charles Bronson no filme Uma Razão Para Viver.

As risadas vieram com Encontros e Desencontros, ao lado de Burt Reynolds e Candice Bergen e na comédia romântica Coisas Do Amor

A nova geração talvez lembrará de Jill em papéis discretos e marcantes em alguns seriados. Ela apareceu como a mãe de Ally McBeal, a neurastênica Bobbi Broderick que tenta falir a clínica de Nip / Tuck  e a corruptível Letitia Darling em Dirty Sexy Money

Hollywood amanheceu triste, mais uma vida terrena sobe aos céus para juntar-se a grande constelação já existente no paraíso. Infelizmente, foi a vez de Jill Clayburgh, aos 66 anos.

A atriz faleceu ontem em sua casa, perdendo a batalha que travou durante 21 anos contra a leucemia. 




A lua e eu



La Luna

Ópera naturalista e féerica de Bernardo Bertolucci sobre o incesto, realizada três anos após o ataque de megalomania que originou 1.900 e sete anos depois do polêmico e amanteigado O Último Tango em Paris.

Ninguém usa manteiga em La Luna, mas o complexo de Édipo é levado ao extremo do desespero. Sem abrir mão da sofisticação, Bertolucci filma tudo com pompa desmedida, roteiro feito em família, com o irmão Giovanni, a cunhada Clare Peploe e retoques de Franco Arcali. A sublime fotografia é de Vittorio Storaro.

Bernardo é um cara porreta, extrai o melhor dos seus atores e castiga Jill Clayburgh em cena, como a diva de ópera arrasada, num momento introspectivo e sombrio, papel marcante de sua carreira. Cansada e fragilizada, viúva da noite pro dia,  parte com o filho adolescente para a Itália e começa o problema, pois o garoto não menos fragilizado pela morte do suposto pai envolve-se com drogas e a mãe, tentando salvar o filho de todas as maneiras, involuntariamente apaixona-se por ele. É a última tentativa de uma mulher em crise para resgatar a sanidade do jovem, ou de ambos, arrasados pela perda da figura masculina em suas vidas.

Os dois confusos entram num devaneio. O garoto com as drogas e a mãe arrasada pela idade acreditam que devem amar um ao outro e sobreviver um do outro, chegando aos finalmentes da purgação e da descoberta mútua de uma paixão incestuosa, entregando-se de corpo e alma.

Cheio de cenas líricas e dolorosas, todas musicadas com árias operísticas, beira o lírico e resbala no desconforto, com os atores pendendo entre o arraso e o desnorteio existencial, viajando no texto enquanto câmera extrai beleza de qualquer coisa em movimento.

La Luna, a lua, é testemunha ocular. Ela está sempre no céu, redonda e brilhosa nos momentos mais cruciais, inclusive na catarse final, a chave do mistério que leva a crer que o incesto é genético.

O elenco de apoio é cheio de presenças fundamentais. Fred Gwynne é o pai que morre no início da história. Alida Valli aparece para duas cenas emocionantes. Peter Eyre é britânico frescalhão apaixonado pela diva. Franco Citti é o gigolô encantando pelo adolescente ao som de Bee Gees. Veronica Lazar é a lésbica mal resolvida, Tomas Millian é o recalcado que carrega todo o segredo da história. Até o palhaço do Roberto Benigni já estava por aqui, fazendo murisquetas como um instalador de cortinas.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

E o Falcão?



A primeira vez que assisti O Falcão Maltês foi no Corujão, com o nome de Relíquia Macabra. Eu ainda não vivia respirando e comendo cinema, mas achava o máximo ficar acordado até altas horas da madrugada pra ver filme preto e branco.

Lembro de ficar impressionado com a abertura do filme, detalhando em nuances de suspense a história do tal falcão, causando de imediato a paixão pelo objeto,  recheado de pedras preciosas. Hoje, aos vinte e seis anos e trocentas revisões do filme, percebo com alegria e burrice que a trama nunca foi sobre o bendito falcão.

Pra tirar uma onda, a trama cheia de reviravoltas ficaria bonita até numa chamadinha da Sessão da Tarde: 'Um detetive durão e uma galerinha do mal irão aprontar mil confusões para recuperar O Falcão Maltês!'

O desempenho do elenco em criar todos os arquétipos conhecidos de filmes policiais, ultrapassa os níveis do sublime.

Estamos diante da gênese da escória, o nascimento das regras, da trama sem correria e charmosa por unir os personagens entre quatro paredes, proferindo o milagre do verbo e deixando em êxtase os que ouvem suas palavras magnéticas.  

O herói é Humphrey Bogart subindo o degrau de galã para abandonar a carreira de mero coadjuvante. Ele é o detetive hostil e cínico, mandando o passado as favas e nem um pouco preocupado com o futuro. Intimida até os policiais, pois está imaculado diante de toda a sujeira que envolve o seu escritório.

Mary Astor é a paixãozinha do herói. Desbancando Geraldine Fitzgerald, Rita Hayworth, Ingrid Bergman e Olivia De Havilland, considerada por alguns coroa demais para o papel, ela é a mulher com trinta identidades diferentes para esconder a baixaria sob o verniz de recato.

Peter Lorre é o seboso Joel Cairo, um homem que apanha por seus hábitos suspeitos, o maior deles é usar perfume de gardênia nos anos 40. Junto com Mary Astor, ele protagoniza ataques de pelhanca memoráveis quando um resolve alfinetar o lado negro do outro.

Sidney Greenstreet, estreando no cinema aos 62 anos e contratado pela necessidade da produção precisar de alguém muito gordo, é a cabeça (ou seria a barriga?) da organização. É o vilão soturno e educado, cheio de frases de efeito. Um vilão de quadrinhos modernosos é a cara e o corpo de Greenstreet, procura aí pra ver.

Ator de teatro que vivia nervoso nos bastidores com medo de escorregar na atuação, Greenstreet fez bonito e levou uma indicação ao Oscar de coadjuvante em seu primeiro filme. A dobradinha com Peter Lorre, 'chefão rotundo e capanga sinistro', rendeu nove filmes. Os dois estavam juntos em Casablanca infernizando Bogart mais uma vez.  

Ward Bond e Barton MacLane são os meganhas. As meninas do bem são Gladys George como a viúva louca pra passar o rodo no herói e Lee Patrick, a secretária com terceiras intenções. Jerome Cowan é o parceiro que se não morre, não tem história.

O filme de 1941 é a terceira adaptação da Warner do livro de Dashiel Hammett, sempre inconformado com as outras versões incapazes de absorver o seu texto. John Huston, pai da Anjelica, pediu licença ao estúdio, dirigiu seu primeiro filme e roteirizou a obra repetindo frase por frase do livro original, assim como as características físicas e psicológicas de cada personagem, levando Hammett ao delírio com a fidelidade ao texto.

Tecnicamente, é tão divisor de águas quanto Cidadão Kane, rodado na mesma época em outro canto da cidade. Huston também criou movimentos de câmera inovadores, lances de fotografia, subversão de roteiro e copiou de Hitchcock a idéia dos storyboards, delimitando a ação e os movimentos em cena antes das câmeras começarem a funcionar. Rodado em dois meses e com um orçamento ridículo de 300 mil dólares, que talvez justifique a interiorização constante das cenas.

Os historiadores de cinema apontam O Falcão Maltês como o primeiro filme noir da história do cinema americano. Nos anos seguinte, Hollywood foi invadida por clássicos e descartáveis do gênero, cheios de detetives gentis como um tijolo, loiras fatais e tramas mirabolantes que retratavam o submundo dos EUA, latente por conta da depressão. Um novo país era visto nas telas, cheio de gente inescrupulosa querendo defender a caveira e o almoço da pior forma.   

Uma página brilhante da história do cinema, que merece ser apreciada por todos os que pretendem conhecer origens e mergulhar em histórias bem armadas. Uma relíquia não tão macabra assim.