quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Adoráveis Intrusos



VIOLÊNCIA E PAIXÃO


Pra começo de conversa, esqueça o título nacional. Gruppo Di Famiglia In um Interno é o nome da obra e traduzindo do italiano seria algo como a família em um cômodo.

A família vista no filme não possui laços sanguíneos. Ela é formada acidentalmente, de maneira invasora.

Burt Lancaster, numa atuação solene e cheia de sensibilidade, é um professor aristocrático, um intelectual ermitão isolado num prédio antigo. Sua vida se resume as intensas paixões vazias por obras de arte, livros e o silêncio.

Um belo dia, a desconhecida Bianca Brumontti vem bater a sua porta querendo alugar o apartamento em cima do seu, como presente para a filha que irá se casar com um jovem rapaz. O professor não quer ser incomodado, deixa bem claro que não tolera outras pessoas ao seu redor, principalmente pessoas tão intragáveis quanto a corte de Bianca Brumontti, formada pela filha, o noivo da moça e o displicente Konrad, gigolô da madame. Mas eles são intoleráveis e insistentes, chatos pra falar a verdade, e a contragosto o professor aceitará os seus novos inquilinos.

Em seu penúltimo filme como diretor, Lucchino Visconti ainda demonstra uma pequena preocupação com o fim da aristocracia da qual ele fazia parte, um mundo de cerimoniais tradicionalistas ruindo com os badalos dos anos 70, onde já não havia mais espaço para as frescuras de intelectuais ranzinzas.

A preocupação maior de Visconti em cena é com a morte e a solidão. O personagem de Burt Lancaster, constantemente assombrado por lembranças de uma vida sem graça e solitária, aceita aquela gente estranha com muita relutância e um afeto parcimonioso e sincero. Ele começa a pesar toda a sua existência e questiona-se constantemente a respeito de emoções que não viveu assim como teme a solidão diante da morte que pode estar próxima. É o momento de decisão da vida do professor, a hora de rever alguns conceitos.

O contraste grosseiro entre a turma de noveau riche do andar superior com a classe quatrocentona do professor é o que move as engrenagens da história. O professor se afeiçoa cada vez mais com aquelas irreverentes figuras, ao ponto de ser visto pelos jovens como um pai. É a chegada, num esporro, de uma família que ele não teve e da qual ele vira conselheiro, expectador e conforto para cada um dos parentes arranjados. Os velhos valores e a rigidez do professor são cada vez mais atropelados pela inquietude dos jovens vizinhos envolvidos em intrigas políticas e bacanais românticos. Os conflitos entre aquelas pessoas são intensos demais para a vida tranqüila e hermética do professor e tudo lhe causa surpresa, fazendo com que ele vire também um administrador da inconseqüência daquela gente que ele considera tão enfadonha, mas não quer jamais que lhe saiam de perto.

A política é tocada de leve na figura do personagem Konrad, vivido por Helmut Berger. Os conflitos entre fascistas e comunistas e a onda de terrorismo político que começava a assolar a Europa, farão parte de uma vida tão sem sal como a do professor.

Há quem diga que a relação entre Konrad e o professor, é um reflexo autobiográfico do verdadeiro romance entre Helmut Berger e Lucchino Visconti, homossexuais assumidos e apaixonados fora das telas. Se existe amor entre os dois, não fica claro e jamais é vulgarizado. O que transparece entre eles é a admiração respeitosa de Konrad pela classe e inteligência do professor, assim como o professor admira Konrad pelo seu heroísmo misterioso e suas inclinações políticas reacionárias.

Esse é o universo dessa família improvisada que mexe com a paz de um velho professor. Ele, tão apaixonado por quadros no estilo conversation pieces, pinturas que mostram famílias em momentos de intimidade, terá direito aos seus momentos familiares mesmo que aos trancos e barrancos.

Junto com Burt Lancaster e Helmut Berger, Silvana Mangano enche de fúria cada minuto onde aparece como Bianca Brumontti. Ela é a contradição ambulante. Muito bem vestida por Piero Tosi, Silvana aparenta ser uma dama de alta classe, mas é uma criatura neurótica e ciumenta que vende uma imagem não condizente com seus modos um tanto desprezíveis. Silvana faria aqui a sua última aparição em filmes antes da morte do filho Federicco, uma dor irreparável que a manteve afastada das telas por 10 anos.

A encantadora Claudia Marsani é Lietta, a doce e carinhosa filha de Bianca que conquista o professor com sua meiguice. Stefano Patrizzi é o noivo insosso e recalcado. Em flashbacks, podemos vislumbrar as belezas inexoráveis de Dominique Sanda como a mãe e Claudia Cardinale como a esposa do professor.

O roteiro intenso de Enrico Medioli e Suso Cecchi D’Amico foi criado como uma peça de teatro, especialmente para que Visconti com a saúde debilitada e preso a uma cadeira de rodas, pudesse dirigir com muita calma dentro de suas limitações.

Talvez seja por isso que o final de muitas coisas, principalmente da vida, fale mais alto por aqui.

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