domingo, 28 de novembro de 2010

Piada sem graça



Leslie Nielsen morreu na madrugada de domingo e a semana começa sem graça. Quase todas as semanas começam sem graça, mas o cinéfilo é paga pau da sétima arte e quando morre um astro, ficamos cheio de dor.   

Coincidências a parte, na tarde de sábado revisitei Creephshow, rara ocasião em que Nielsen faz papel de vilão e mata Ted Danson na praia com o movimento da maré.

Morreu o ator que os nossos pais e avós nem sempre lembravam o nome e nos almoços de família costumavam chamá-lo de o velho da cabeça branca que fazia aqueles filmes engraçados. Já vi gente confundir o Leslie Nielsen com o Steve Martin.

Nem todo mundo sabe quem é Leslie Nielsen, mas todo mundo conhece Frank Drebin, o policial deliciosamente estúpido que detonava a recepção da rainha Elizabeth, passava uma lixa na bunda de um cadeirante e num grand finale de trilogia, arrebentava aos pontapés a noite do Oscar apenas para manter a paz nos EUA.

Nielsen garantiu muitas risadas e marcou piadas no coração de todos como o Drácula de Mel Brooks, o médico de Apertem Os Cintos, o Piloto Sumiu!, o agente Dick Steel, o Mr. Magoo e o padre Euposso. 

Nem só de risadas a carreira do homem foi construída e ele enfrentou alienígenas na ficção cult Planeta Proibido, não impediu o triste Destino do Poseidon e foi assassinado por Barbra Streissand em Querem Me Enlouquecer.    

A cara mista de idiotice e benevolência de Lesie Nielsen está na galeria nostálgica da Sessão da Tarde onde guardamos os peitos de Elvira, Ferris matando aula, as bruxas inglesas chefiadas por Anjelica Huston, Indiana Jones, o DeLorean cruzando o tempo, E.T. e a bicicleta, Sr. Miyagi, Slot e o Tom Hanks quando era engraçado.

Se bem que o Hanks continua engraçado sempre que disfarça prisão de ventre com seriedade. O humor no cinema anda caindo pelas tabelas, mesmo com os esforços de Steven Seagal, Julia Roberts, Sandra Bullock e Robert Pattinson.  

Voltando aos comediantes assumidos, tomara que as gerações futuras desfrutem de um próximo Leslie Nielsen saído desse balaio incansável de novidades instantâneas. Nielsen não nasceu comediante, tornou-se nos anos 80, num seriado de televisão que deu origem aos filmes da série Corra Que a Polícia Vem Aí

Lá todo dia tem astro, todo pelego ganha Oscar e comediantes então, explodem aos borbotões. Quem sabe um deles não garanta risadas quando embranquecer os cabelos, usando da sutileza de Nielsen, imortalizado antes mesmo de morrer pelo crítico certeiro Roger Ebert, com o honroso codinome de Laurence Olivier das piadas.  

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Uma simples continuação e algumas emoções tardias



REC 2

Quem lembra da repórter Angela Vidal, aquela que estava rodando um programa noturno com os bombeiros de Barcelona e entrou de gaiata no olho do furacão, durante uma misteriosa epidemia ocorrida em um prédio velho?

Angela sobreviveu? E o que era a tal epidemia do enervante REC?

Assisto o segundo filme e corro para a internet me deparando com várias críticas negativas sobre esta continuação, algumas até repudiando a solução dos mistérios do primeiro filme. Os detritores interessados em saber qual o problema do padre que morava na cobertura e sua relação com a tal menina Medeiros levantaram-se em paus e pedras, reprisando um fenômeno conhecido: o primeiro filme foi tão superestimado que teve gente esperando a mesma carga de novidade deste segundo.

Sentaram bonito todos os que esperaram aquele caso raro de sequência que supera o filme original, pois REC 2 é uma cartilha explicativa que esclarece os pontos de interrogação do primeiro filme, um simpático e inovador fenômeno cinematográfico que disparou os batimentos cardíacos de meio mundo, inclusive deste que vos escreve.

O cenário é o mesmo, a receita também. Os diretores seguiram a cartilha e realizaram um filme satisfatório com as mesmas fórmulas. Um grupo de resgate entra no prédio em busca de sobreviventes, novamente com uma câmera na mão e tome-lhe chinelo, grito, correrias, sangue, tiro e o bom e velho desespero coletivo, coisa que funciona bem desde os filmes catástrofe de Irwin Allen da década de 70.

No auge do falar mal, ninguém reparou na sutileza das novidades: o aparecimento de dois pontos de vista diferentes da mesma tragédia, um do grupo de resgate e o outro de três adolescentes burros que entram no prédio onde começou a confusão toda.

Aumentaram também o mal onipresente dentro e fora do prédio, gerando aquele clima tremendo de desconfiança onde todos são suspeitos e as aparências, como sempre, enganam todas as possíveis vítimas e os heróis equivocados. A ameaça assume proporções quase épicas em história, por mais que o roteiro demonstre algumas crateras, e em ambientação, sem perder o compasso da tensão.

A resolução do mistério só poderia ocorrer em meio a claustrofobia da escuridão, eterna convidada dos filmes de terror e aqui, pobremente iluminada pela visão noturna de uma câmera, mesma chave do fim do primeiro filme.

Quem merece umas boas ofensas é a distribuidora nacional do filme, que em pleno estado de burrice, denuncia a brincadeira no subtítulo da capa do DVD.

Após escrever sobre esta continuação, mexo nos meus textos antigos sobre cinema e descubro emocionado um entusiasta que me fez assistir REC, o saudoso amigo Felipe, que na época residia em Porto Alegre e me deu um telefonema, cheio de purpurina e êxtase: 'Vinny, eu acabei de assistir REC no cinema aqui e por favooooooooooor, tens que assistir!'.

E lá fui eu, metido a galo, assistir o primeiro filme com o aval do Lipe e a insistência do Edu e do João, que trabalhava comigo. Os rapazes acertaram em cheio e eu dormi uns dois dias com a luz acesa por conta do primeiro filme.

Em breve fico sabendo do Edu se ele gostou da continuação. Para falar com o João que hoje mora em Camboriú, a internet salva.

E para o Lipe, que aos poucos definhou e perdeu a joie de vivre, deixando meio mundo sem telefonemas risonhos, resta uma boa oração e a saudade.

domingo, 14 de novembro de 2010

O filme dos sonhos



Lá pelas tantas, Leonardo DiCaprio pede para Ellen Page criar um labirinto e então Christopher Nolan desafia o espectador a encarar o seu próprio labirinto, um roteiro que levou dez anos para ser afinado e reescrito infinitas vezes para chegar ao que estamos assistindo, uma reciclagem magnética e bem realizada de velhas fórmulas, com a sabedoria de Nolan, um cara que em breve encontra o caminho da roça e define sua identidade estética.  

A Origem tem uma linha narrativa cheia de mirabolâncias e todas fazem sentido quando agarramos as infinitas pontas com muita atenção, esperando a junção no final. É a história dentro da história, meio cartilha explicativa sobre os  mecanismos do inconsciente, intercalado com cenas de ação e efeitos de tirar o fôlego. Entram no caldeirão Phillip K. Dick, mitologia grega, artes plásticas, xadrez, George Lakoff e um caminhão de referências, pequenas malandragens que permanecem até os minutos finais para criar pontos de interrogação na cabeça de quem assiste e estimular a criação de diferentes teorias em mesa de boteco. 

Está muito longe de ser onírico e viajão, como falaram por aí. Onírico mesmo, ao pé da letra só o Lynch, e com certeza o Jodorowski. Esses são os caras que colocaram sonhos e pesadelos em celulóide. Nolan não faz nada disso e organiza a história sem dar muita margem para a psicodelia. Nem o sexo, um elemento forte no mundo dos sonhos, teve chance de participar. A subversão é delicada.

Um vislumbre desta trama já estava em Amnésia, que parecia ser sobre o cruzamento de sonho e realidade, força motriz deste filme cheio de elipses e reviravoltas inovadoras que lutam para escapar dos clichês e transformar a realidade na inatingível matéria dos sonhos, bagunçada e invadida com naturalidade por pessoas normais. Para vivê-las, Nolan escolheu um elenco condizente com o espetáculo.   

Di Caprio é Cobb é o anti-herói, tentando refazer a vida, remoendo um amargor semelhante ao de Ilha do Medo. Ellen Page é Ariadne, com a mesma função de sua antecessora grega na história de Teseu.

Joseph Gordon-Levitt, Dileep Rao e Tom Hardy ajudam a formar o dream team com simpatia. Cillian Murphy é o objeto de desejo dos invasores de sonhos. Ken Watanabe é o causador da história. Na lanterna, Michael Caine aparece em ponta como o senhor da razão. Tom Berenger é o executivo suspeito, Pete Postlethwaite é o moribundo e Lukas Haas pode ser visto no começo.

Marion Cotillard é o mal absoluto até no nome e tenta colaborar com a emoção em um filme que é todo razão. Brincadeira a parte, Cotillard está em cena e Edith Piaf está na trilha sonora cantando Je Ne Regrette Rien, cuja letra salva os personagens de lembranças e acontecimentos que precisam ser esquecidos.

Enquanto diretor, Nolan é um artesão excelente em revolucionar o jeito de contar uma história e fazer muito dinheiro de forma inteligente. Pra chamar Nolan de Kubrick, só na base do faturamento. Depois do sucesso de Batman, ele é menina dos olhos da Warner, que baixa as calças para o rapaz.

A Origem é apenas um projeto pessoal realizado na plenitude de um orçamento gigantesco, resultando num entretenimento pomposo e divertido desde seu nascimento, quando a Warner de olho no dinheiro, adiantou a trama e inseriu em todo o mundo a idéia de que este era o melhor filme da década. 


E como cada década tem seu fenômeno, este já foi imortalizado.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A Hora da Porquice (toda a minha fúria)


A porquice... oh, a porquice!
Mais suíno que o remake de Haloween, um sacrilégio em celulóide.

Satisfatório só visualmente, de tudo que é jeito. Elenco cheio de gente bonita, fotografia estilosa e pirotecnia pra encher linguiça. Coisa feita para a nova geração entender, coisa que é um chute bem na costura do saco.

Quando a nova geração quiser conhecer mitos, que vá a luta e force o cérebro. Assista os clássicos e pare de dar risada da precariedade dos efeitos antigos.

O roteiro ruim que nem esporro de professora de matemática, oferece apenas a perversão de uma idéia originalíssima surgida nos anos 80 e prostituída em 2010 por seu criador Wes Craven. Sinceramente, Wes foi muito mais feliz com os remakes de Quadrilha De Sádicos e Aniversário Macabro, Viagem Maldita e A Última Casa, respectivamente.

O novo argumento saiu do intestino de Wesley Strick, do cérebro é que não foi nem a pau. Em dias melhores, Strick roteirizou Desejos, Cabo Do Medo, Aracnofobia e Lobo.

Aí ele perdeu a razão e também roteirizou A Casa De Vidro e Doom. Até hoje ele não recuperou a sanidade e o que vemos em cena é a mistura de quatro finalistas dos quinze esboços rabiscados por Strick para este remake. Cheio de burrice, o cara limou até o pai meganha da mocinha, um dos heróis da trama original.

Terror não tem. Nem clima. É um filme limpinho e honesto, com a besteira do susto mútuo. Mãe chegando por trás de filho, amigo surgindo por baixo do outro, cagaços rasos e previsíveis que puxam o pé sem a ousadia de puxar para baixo da cama. 

Deveria ser mais um prequel contando a história de um dos grandes monstros do panteão do horror, o imortal Freddy Krueger. Sua história aparece apenas no final e impressiona de forma grotesca porque se aproveita de maus tratos infantis. O remorso dos jovens perseguidos em pesadelos por Freddy, graças a atitude criminosa dos pais, é de envergonhar a mãe do guarda. 

Fuzilamento pro elenco é pouco. Rooney Mara é a Nancy toda depressiva, dark de boutique. Kate Cassidy, um projetinho de Charlize Theron mal aproveitada por ser a única gostosa do filme e não brinda nenhuma cena com trajes mínimos, outro estupro de uma regra sagrada do filme de terror. Kyle Gallner, Thomas Dekker e Kellan Lutz contabilizam as vítimas masculinas. Clancy Brown é o pai feroz em dobradinha com Connie Britton, a cara dura que não consegue expressar pavor. 

O astro principal virou um coadjuvante. Reduziram o Freddy a pó de traque, com maquiagem pobre que deixou o rapaz com cara de lagartixa. Jackie Earle Haley foi o infeliz escolhido para usar o suéter do Fluminense e a luva de navalhas depois que Billy Bob Thornton fugiu, com razão, do filme. Jackie só meteu medo em alguém como o pedófilo de Pecados Íntimos. Aqui ele é um nanico desconexo, um monstro apático. 

Para o elenco dos clássicos, os produtores ofereceram uma participação a John Saxon, o pai da Nancy no filme original. Robert Englund que é bom, o primeiro Freddy, não foi considerado nem para o papel ou pontinha foi oferecida. É o primeiro filme sem o cara que participou religiosamente de todos, incluindo a série de televisão de 1988.

O pesadelo é na rua Elm e o nome da rua nem é citado no filme. O culpado pagante de tudo é Michael Bay, que deveria enfiar o rabo entre as pernas e continuar produzindo só filmes mirabolantes e divertidos com carros robóticos e deixar o terror de lado para sempre

Tão empolgante quanto uma reunião dos Vigilantes do Peso, o filme me fez andar de um lado pro outro na frente da televisão, torcendo pra acabar. A hora do pesadelo só começou quando constatei que meus cigarros é que estavam acabando.

Sorrisos malvados


Kick-Ass é um filme divertido e empolgante. De original não tem nada, mas merece aplausos pelo status de gênese de uma nova tendência cinematográfica que vai gerar uns 10, com azar, talvez uns 30 filmes iguais a ele.

Agradável ao extremo, por mais que o quadrinho não esteja adaptado em verso e prosa, fato relevantíssimo que causou a fúria dos fãs extremistas, sua grande piada redundante segura o riso até o final: os fracassados querem vingança, é a vez dos desiludidos conquistarem o seu lugar. Pessoas normais arrombadas pela vida resolvem bancar os paladinos da justiça. Alguns para vingar dores, armados até os dentes e treinados friamente para tal propósito e outros totalmente sem jeito para a coisa, apenas para trazer um pouco de emoção à pasmaceira da vida.

O filme gerou controvérsias moralistas pelo mundo. Motivo: o personagem Hit-Girl, uma menina de 11 anos metendo facadas, tiros e apanhando de brucutus maiores que ela. Não pega bem, vá lá.

A pequenina Chloe Moretz, a Hit-Girl, é uma beleza de atriz mirim, enche o filme de vida e atropela os outros atores com estilo. É uma criança falando palavrão, botando pra quebrar e o nosso lado perverso acha muita graça disso. Nos resta torcer para que a jovem Chloe não padeça da maldição que ronda as crianças de Hollywood, aquela que sumiu com Macaulay Culkin, Abigail Breslin, Haley Joel Osment e recentemente, Dakota Fanning.

Aaron Johnson é um protagonista fácil de se gostar. Christopher Mintz-Plasse continua sua ascensão desde que o mundo babou pelo simpático McLovin de Superbad. Mark Strong é o vilão da vez, friamente perverso e Lyndsy Fonseca, a paixonite enviesada do protagonista, é uma gostosura.

O meu querido Ass-Face Nicolas Cage foi convidado. Enquanto ator, uma tragédia ambulante, cada vez mais famoso por aporrinhar os produtores de roteiros adaptados dos quadrinhos para participar de qualquer coisa. Cage traz o fracasso escrito na testa e o fato contribui para a postura do seu personagem. Para quem não percebeu, o herói Big Daddy tem a mesma entonação de voz do Batman televisivo dos anos 60.

Michael Rispoli é o chefe dos capangas burros do vilão, outro achado em cena. Elizabeth McGovern aparece tristemente para morrer nos primeiros minutos pela segunda vez. No remake de Fúria De Titãs, ela padece da mesma sina. E se alguém aí lembrar dela em Era Uma Vez Na América e Na Época Do Ragtime, ganha um beijo na boca.

Amar loucamente o filme é acariciar uma faca de dois gumes. Se por um lado, ele é moralmente repreensível, de outro ele é fantástico e desgraçadamente cômico. 

A violência, a amoralidade, o sangue e as piadas de salão me agradam muito, quando bem arranjadas em cena.

Sua intenção é divertir com baixaria e consegue com muita eficiência, dominando o humor negro pelas rédeas e usando referências de outros filmes e quadrinhos de heróis. Um ouvido treinado vai reparar acordes que lembram John Williams em Superman e Hans Zimmer em Batman na trilha sonora.

É pra descontrair, por mais que suas piadas envolvendo crianças e armas passem raspando pela garganta. Tem algo de errado aí, mas se o lance é achar graça, eu embarquei no bonde.

domingo, 7 de novembro de 2010

Woody, eu estava morrendo de saudades



Assistir Tudo Pode Dar Certo é encontrar um velho amigo, descansar a cabeça no ombro conhecido. Quando Woody Allen não está na Europa desmembrando seus filmes antigos com um elenco alheio ao seu universo, volta para NY só pra bater aquelazinha. Curioso é perceber como sua maldade atual é disparada em tiros com o maior calibre possível.

Filme feito com dinheiro europeu e rodado na velha NY, onde Woody bancando a dama ressentida em entrevistas, prometeu jamais retornar porque os americanos não financiavam e nem entendiam mais os seus filmes. 171 puro, afinal Woody não é idiota. Para quem é fã da fase nova-iorquina, o filme é um presente. Sentida é a ausência de Woody como o neurótico supremo.

Larry David é um excelente ator, mas destoa e exagera em caricaturar Allen. Se ele resolve aparecer, defenderia com brilhantismo e sutileza o extremo nervosismo do tipo que aprendemos a amar. Ele deveria dar a cara a tapa e botar o alvo no peito, pra deixar a coisa toda mais gostosa.

Você já conhece o caminho. Filosofia, existencialismo, mau humor, judaísmo, sexo, vida, amor e morte. Só faltou o outono. A originalidade espoca na crueldade latente para subestimar os faroleiros que assistem os seus filmes. É uma sacada tremenda, pura esperteza. 

É a história do neurótico pé no saco metido a sabichão que conhece uma garota gostosa e burra e de repente, o texto torna-se uma delícia enquanto revisitamos cada movimento e palavra. Pedras são atiradas em tipos étnicos e piadas cruéis e funcionais sobre arte e intelectualidade são contadas. A voz de Allen calando seus críticos, dizendo que é isso que sabe fazer, então é melhor chupar o dedo ou engolir seus filmes, c'est fini.

Pecado mortal é dizer que o filme é clichê sem saber que se trata de uma idéia adormecida. Seu roteiro nasceu nos anos 70, quando Allen tinha o desejo de colocar Zero Mostel como protagonista. Em 77, Mostel bateu as botas e o texto ficou de lado. Ressurgiu tardiamente e passou meio batido, porque conhecemos esse universo de trás pra frente. 

No elenco, enquanto musa passageira Evan Rachel Wood é a vítima que se apaixona pelo carrasco enchendo a tela de tesão. Mais tarde, será a criatura voltada contra o criador, e a menina faz bonito, não deixa a peteca cair.    

Patricia Clarkson também foi convidada para viver outra metamorfose, afinal o filme é feito disso. Numa explosão cômica, ela deixa de ser Blanche DuBois e vira Diane Arbus, surpreendendo Ed Begley Jr. como o ex-marido pateta e caipira, que abandona o verniz de macho alfa para tornar-se homossexual.

Michael McKean, Lyle Kanouse e Adam Brooks são os amigos com uma paciência bíblica para aturar o neurastênico intelectual. Henry Cavill é o sexual Randy e Jessica Hecht é a mediúnica Helena.

Quase ninguém parou pra notar que o filme não é sobre intelectualidade. Parece mais uma fábula com final bonitinho, como aqueles filmes antigos de Eric Rohmer.

Whatever Works, ao pé da letra, significa que tudo é válido, qualquer coisa que vier é lucro na hora de repaginar uma vida sem graça.  E para um autor em estado de graça, tudo é válido na hora de fazer cinema, até mesmo pregar uma moral bem amoral só para divertir.

sábado, 6 de novembro de 2010

Jill Clayburgh


Cria do teatro, Jill Clayburgh fazia parte de uma geração de atrizes que ganhou os palcos nos anos 60 em peças que retratavam os ideais feministas. Esteve ao lado de Marsha Mason, Carrie Snodgress e Ellen Burstyn. Começou muitíssimo bem. 

No cinema, seguiu empunhando a bandeira nos anos 70 ao lado de Meryl Streep, Diane Keaton, Glenda Jackson e Jane Fonda, santas padroeiras das mulheres independentes e obstinadas, dispostas a enfrentarem o mundo e os machos sozinhas.

O papel que a conduziu ao estrelato e rendeu a primeira indicação ao Oscar, é o da divorciada recomeçando do zero em Uma Mulher Descasada, inspiração máxima do seriado Malu Mulher, com Regina Duarte. 

Segundo a Entertainment Weekly, Jill era uma das 25 grandes atrizes de todos os tempos, deixando performances inesquecíveis em O Expresso De Chicago, La Luna, Esta é Minha Chance, Gente Diferente, Hanna K. e Correndo Com Tesouras

O primeiro filme que assisti com Jill foi o doloroso O Preço do Sucesso, que muito antes de Requiem Para Um Sonho, já esmiuçava as dores de uma mulher destruída por anfetaminas. Das madrugadas do Corujão, fica a lembrança de Jill interpretando duas atrizes: Carole Lombard em Os Ídolos Também Amam, acerca do romance de Carole com Clark Gable e Jill Ireland, contemporânea e xará, esposa de Charles Bronson no filme Uma Razão Para Viver.

As risadas vieram com Encontros e Desencontros, ao lado de Burt Reynolds e Candice Bergen e na comédia romântica Coisas Do Amor

A nova geração talvez lembrará de Jill em papéis discretos e marcantes em alguns seriados. Ela apareceu como a mãe de Ally McBeal, a neurastênica Bobbi Broderick que tenta falir a clínica de Nip / Tuck  e a corruptível Letitia Darling em Dirty Sexy Money

Hollywood amanheceu triste, mais uma vida terrena sobe aos céus para juntar-se a grande constelação já existente no paraíso. Infelizmente, foi a vez de Jill Clayburgh, aos 66 anos.

A atriz faleceu ontem em sua casa, perdendo a batalha que travou durante 21 anos contra a leucemia. 




A lua e eu



La Luna

Ópera naturalista e féerica de Bernardo Bertolucci sobre o incesto, realizada três anos após o ataque de megalomania que originou 1.900 e sete anos depois do polêmico e amanteigado O Último Tango em Paris.

Ninguém usa manteiga em La Luna, mas o complexo de Édipo é levado ao extremo do desespero. Sem abrir mão da sofisticação, Bertolucci filma tudo com pompa desmedida, roteiro feito em família, com o irmão Giovanni, a cunhada Clare Peploe e retoques de Franco Arcali. A sublime fotografia é de Vittorio Storaro.

Bernardo é um cara porreta, extrai o melhor dos seus atores e castiga Jill Clayburgh em cena, como a diva de ópera arrasada, num momento introspectivo e sombrio, papel marcante de sua carreira. Cansada e fragilizada, viúva da noite pro dia,  parte com o filho adolescente para a Itália e começa o problema, pois o garoto não menos fragilizado pela morte do suposto pai envolve-se com drogas e a mãe, tentando salvar o filho de todas as maneiras, involuntariamente apaixona-se por ele. É a última tentativa de uma mulher em crise para resgatar a sanidade do jovem, ou de ambos, arrasados pela perda da figura masculina em suas vidas.

Os dois confusos entram num devaneio. O garoto com as drogas e a mãe arrasada pela idade acreditam que devem amar um ao outro e sobreviver um do outro, chegando aos finalmentes da purgação e da descoberta mútua de uma paixão incestuosa, entregando-se de corpo e alma.

Cheio de cenas líricas e dolorosas, todas musicadas com árias operísticas, beira o lírico e resbala no desconforto, com os atores pendendo entre o arraso e o desnorteio existencial, viajando no texto enquanto câmera extrai beleza de qualquer coisa em movimento.

La Luna, a lua, é testemunha ocular. Ela está sempre no céu, redonda e brilhosa nos momentos mais cruciais, inclusive na catarse final, a chave do mistério que leva a crer que o incesto é genético.

O elenco de apoio é cheio de presenças fundamentais. Fred Gwynne é o pai que morre no início da história. Alida Valli aparece para duas cenas emocionantes. Peter Eyre é britânico frescalhão apaixonado pela diva. Franco Citti é o gigolô encantando pelo adolescente ao som de Bee Gees. Veronica Lazar é a lésbica mal resolvida, Tomas Millian é o recalcado que carrega todo o segredo da história. Até o palhaço do Roberto Benigni já estava por aqui, fazendo murisquetas como um instalador de cortinas.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

E o Falcão?



A primeira vez que assisti O Falcão Maltês foi no Corujão, com o nome de Relíquia Macabra. Eu ainda não vivia respirando e comendo cinema, mas achava o máximo ficar acordado até altas horas da madrugada pra ver filme preto e branco.

Lembro de ficar impressionado com a abertura do filme, detalhando em nuances de suspense a história do tal falcão, causando de imediato a paixão pelo objeto,  recheado de pedras preciosas. Hoje, aos vinte e seis anos e trocentas revisões do filme, percebo com alegria e burrice que a trama nunca foi sobre o bendito falcão.

Pra tirar uma onda, a trama cheia de reviravoltas ficaria bonita até numa chamadinha da Sessão da Tarde: 'Um detetive durão e uma galerinha do mal irão aprontar mil confusões para recuperar O Falcão Maltês!'

O desempenho do elenco em criar todos os arquétipos conhecidos de filmes policiais, ultrapassa os níveis do sublime.

Estamos diante da gênese da escória, o nascimento das regras, da trama sem correria e charmosa por unir os personagens entre quatro paredes, proferindo o milagre do verbo e deixando em êxtase os que ouvem suas palavras magnéticas.  

O herói é Humphrey Bogart subindo o degrau de galã para abandonar a carreira de mero coadjuvante. Ele é o detetive hostil e cínico, mandando o passado as favas e nem um pouco preocupado com o futuro. Intimida até os policiais, pois está imaculado diante de toda a sujeira que envolve o seu escritório.

Mary Astor é a paixãozinha do herói. Desbancando Geraldine Fitzgerald, Rita Hayworth, Ingrid Bergman e Olivia De Havilland, considerada por alguns coroa demais para o papel, ela é a mulher com trinta identidades diferentes para esconder a baixaria sob o verniz de recato.

Peter Lorre é o seboso Joel Cairo, um homem que apanha por seus hábitos suspeitos, o maior deles é usar perfume de gardênia nos anos 40. Junto com Mary Astor, ele protagoniza ataques de pelhanca memoráveis quando um resolve alfinetar o lado negro do outro.

Sidney Greenstreet, estreando no cinema aos 62 anos e contratado pela necessidade da produção precisar de alguém muito gordo, é a cabeça (ou seria a barriga?) da organização. É o vilão soturno e educado, cheio de frases de efeito. Um vilão de quadrinhos modernosos é a cara e o corpo de Greenstreet, procura aí pra ver.

Ator de teatro que vivia nervoso nos bastidores com medo de escorregar na atuação, Greenstreet fez bonito e levou uma indicação ao Oscar de coadjuvante em seu primeiro filme. A dobradinha com Peter Lorre, 'chefão rotundo e capanga sinistro', rendeu nove filmes. Os dois estavam juntos em Casablanca infernizando Bogart mais uma vez.  

Ward Bond e Barton MacLane são os meganhas. As meninas do bem são Gladys George como a viúva louca pra passar o rodo no herói e Lee Patrick, a secretária com terceiras intenções. Jerome Cowan é o parceiro que se não morre, não tem história.

O filme de 1941 é a terceira adaptação da Warner do livro de Dashiel Hammett, sempre inconformado com as outras versões incapazes de absorver o seu texto. John Huston, pai da Anjelica, pediu licença ao estúdio, dirigiu seu primeiro filme e roteirizou a obra repetindo frase por frase do livro original, assim como as características físicas e psicológicas de cada personagem, levando Hammett ao delírio com a fidelidade ao texto.

Tecnicamente, é tão divisor de águas quanto Cidadão Kane, rodado na mesma época em outro canto da cidade. Huston também criou movimentos de câmera inovadores, lances de fotografia, subversão de roteiro e copiou de Hitchcock a idéia dos storyboards, delimitando a ação e os movimentos em cena antes das câmeras começarem a funcionar. Rodado em dois meses e com um orçamento ridículo de 300 mil dólares, que talvez justifique a interiorização constante das cenas.

Os historiadores de cinema apontam O Falcão Maltês como o primeiro filme noir da história do cinema americano. Nos anos seguinte, Hollywood foi invadida por clássicos e descartáveis do gênero, cheios de detetives gentis como um tijolo, loiras fatais e tramas mirabolantes que retratavam o submundo dos EUA, latente por conta da depressão. Um novo país era visto nas telas, cheio de gente inescrupulosa querendo defender a caveira e o almoço da pior forma.   

Uma página brilhante da história do cinema, que merece ser apreciada por todos os que pretendem conhecer origens e mergulhar em histórias bem armadas. Uma relíquia não tão macabra assim.

sábado, 30 de outubro de 2010

Entre o antes e o depois, o talvez

After.Life

Sem muito o que se apreciar, exceto o medo da parca negra inevitável, sobra Liam Neeson salvando a pátria como o síndico do limiar entre a vida e morte. Sentindo-se o juiz do destino alheio, profere frases de efeito sobre viver, defecar e mijar só para não dar a cara a tapa, transitando entre a solidão e a bandidagem.

Torcer por ele é um mérito do filme, assim como admirá-lo em cena. Garboso e cheio de método, faz poesia com atividades funestas e cria um personagem que evoca carinho e repulsa. Quando ele fala que está ali apenas para 'enterrar', a coisa vai encardir. Ele é o agente funerário que prepara os defuntos para o momento de transição. Sua nova aquisição é Cristina Ricci, em trajes mínimos e guardando a nudez incompleta só para o final. Cristina, você já esteve mais gostosa.   

Justin Long, um ator batuta, é o sofredor tentando salvar a donzela e enchendo a cara para compreender os mistérios donde vévi os mortos. Chandler Cantlebury é o clichêzinho mirim que entra em osmose com as filosofias de Neeson. Celia Weston, pra variar é mãe de alguém, mal aproveitada e cheia de amargor numa cadeira de rodas. O elenco todo se atormenta, se esbofeteia e anda no fio da navalha apenas por não enxergar o óbvio muito óbvio desde o início do filme. Tatear o sobrenatural é conversa pra morto dormir e disfarçar uma ameaça real.

No cagar dos pintos, é um festim psicológico esquisito, onde faltam nós em amarras e mutos balões são inflados sem ganhar o céu. Tudo bem, é filme de principiante querendo fazer charme visual.

A ilustre desconhecida Agnieszka Wojtovicz-Wosloo talvez seja a nova infant terrible da arte dos sustos, abençoada em Sundance pelo curta-metragem Pate

O suspense só martela os nervos num exercício trivial de tensão que ousa questionar vida e morte e serve para aliviar a pasmaceira, passar uma hora diante da tela perguntando se o que está acontecendo é verdade ou mentira, coisa sobrenatural ou pura maldade.

Sobrenatural mesmo é a babação de ovo em cima da diretora Agnieszka. Seu astro Liam Neeson declarou ao Wall Street Journal que ela tem algo de Kahryn Bigelow. Se a profecia estiver certa, Afer.Life poderá ser reverenciado no futuro por meus filhos da mesma forma que reverencio Quando Chega a Escuridão da Sra. Bigelow.

Quem sabe, Agnieszka ganhe o seu Oscar de melhor diretora em breve.

Reencontros e homenagens

Um Misterioso Assassinato em Manhattan

Depois de explicitar suas intenções sobre o fim do casamento com Mia Farrow em Maridos e Esposas, Woody correu atras do prejuízo moral e foi de reencontro ao seu grande amor do passado, Diane Keaton para este filme. Chamou até Marshall Brickman, outro velho amigo de dias melhores, para roteirizar a peça.

O neurótico e a nervosa, agora casados e vinte anos depois, continuam imbatíveis nas mediações de Nova York. Não é A Última Noite de Boris Grushenko e nem O Dorminhoco, mas o pas de deux humorístico entre Woody e Diane funciona muito bem. Diane é a mulher presa ao cotidiano que acredita ter acontecido um assassinato em seu prédio. Com a adrenalina saindo pelas orelhas, ela envolve o marido medroso e inseguro, personagem tradicional de Woody que meio mundo acredita ser igual fora das telas, numa trama mirabolante onde os dois provocam risos e soltam risadas descaradamente um para o outro.  

No picadeiro armado de palhaçadas e lembranças, o texto afirma que existe (ou existiu) vida inteligente no cinema comercial, com piadas sutis e malabarismos que cortejam a criatividade de um autor. Ele tentou dizer que não seria mais um cineasta pretensioso. Mentira pura.

Existe densidade nos personagens deste filme, mas nenhum deles toca aquela punheta intelectual filosófica retomada em filmes seguintes e tão adorada pela massa cult que não aguentaria um dia sequer em Nova York e vai ao terapeuta só pra fazer farol. 

A única coisa que os cults quase não percebem enquanto procuram a luz no subtexto de seus filmes (coisa que eu também faço de vez em quando) é a capacidade ambígua de Woody em tirar graça ou construir tragédias profundas em cima das banalidades cotidianas,  homenageando boas idéias em toda a sua filmografia. Se você nunca viu Bergman, Fellini, Resnais ou até mesmo um filme expressionista alemão, jamais reconhecerá as fórmulas de Woody, lamento. 

Homenagem por homenagem, este aqui está cheio delas. Hitchcock, Billy Wilder, Roman Polanski e Orson Welles foram alinhavados para criar uma nova fórmula bem delineada e cheia de reviravoltas, sempre na contramão da comédia, para excitar cada vez mais o espectador.

E isso não é a minha balela costumeira sobre clichês. Falta de originalidade é uma coisa. Homenagens para o olho treinado na sétima arte, são outros quinhentos. O olho treinado consegue manter o sorriso malicioso num filme de Tarantino, o cult de boutique não.

Alan Alda é o pé-de-pano louco para dar uns pegas em Diane. Seu oposto feminino é Anjelica Huston, a escritora louca para dar uns pegas em Woody. No fim, Woody e Diane eternamente apaixonados, não se deixam pegar por ninguém. Alan e Anjelica até se pegam, mas ele foge do desafio, alegando não ser jovem o suficiente para aguentar Anjelica em toda sua força e tamanho.

Ron Rifkin e Joy Behar são o casal de amigos, enfeites de cena. Jerry Adler é o suspeito, Lynn Cohen é a defunta que insiste em continuar viva e Melanie Norris é a loira fatal. Com uma vilania contida, Marge Redmond é a cúmplice descartada.

Bobby Short canta lindamente na abertura, enquanto Nova York aparece em plenitude e estado de graça, assim como o diretor deste filme.  

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

'Eu cantaria até o dia nascer para mantê-la viva...'



Noite De Desamor é com toda certeza um dos filmes mais emocionantes que eu já assisti na minha vida, sugestão de um grande amigo que sabia do meu gosto por filmes com longas conversas e boas atuações. E o cara acertou em cheio. Melhor mesmo, só um outro amigo que descolou recentemente uma versão do filme, infelizmente ainda não disponível no mercado de DVD nacional, que revi em mais uma madrugada insone. 

É uma profunda reflexão sobre o suicídio, defendida por duas grandes atrizes que armam uma guerra de atenções para saber quem emociona mais. A efusividade de Anne Bancroft luta contra a dor de Sissy Spacek em cada segundo de filme. Aos 21 minutos, a coisa já encardiu seriamente em cena.

E eu  é que não vou ficar de rodeios: Sissy Spacek é Jessie, meticulosa, divorciada, epiléptica e com um filho problemático que raramente dá as caras. Mais que isso, sua personagem é sarcástica e determinada, está de saco cheio da vida e traçou um objetivo de maneira fria durante dez longos anos: no final da noite de sábado, vai cometer suicídio. É o seu direito, a chance de escapar para a tranquilidade almejada dos sete palmos abaixo da terra, abandonar a incompreensão do mundo e o zelo de sua mãe, Thelma.

A saudosa Anne Bancroft é a mãe meio doidinha que não sabe viver sem a filha. 
É o oposto da fatigada Jessie. Vivida e experimentada, dribla todas as agruras da vida com um sorriso, algumas fofocas e doces espalhados pela casa. Seus esforços em impedir a filha contribuem para a tensão crescente do filme e enquanto a noite avança, Thelma percebe que a filha não pretende desistir. 

Quando eu digo que o filme me emociona profundamente, não sei nem se o ponto exato da coisa está na fadiga e a determinação da filha suicida ou nos esforços da mãe em preparar maçã caramelada e chocolate quente para salvar o único amor que lhe resta numa noite de lembranças e lavação de roupa suja entre as duas, com emoções tão cruas e nada sutis. 

O filme não é pouca coisa. É um vale de lágrimas honesto em que a mãe procura incansavelmente um motivo para o ato da filha. Sentimentos são dissecados com amargor e frustrações reprimidas ganham a tela, numa terapia de sentimentos em que a filha tenta justificar as suas decepções e aliviar a barra da mãe, apesar de ter organizado perfeitamente a sua despedida e não voltar atrás em sua escolha.

Deveria ser como todas as outras noites de sábado que as duas passaram juntas, mas um fim de semana tranquilo vira uma confronto de duas vidas, uma querendo acabar e a outra, lutando para impedir. 

Extremamente teatral e dialogado, não recomendável para quem não tem paciência de apreciar um texto sincero e coerente sobre as merdas da vida. Falando em teatro, o filme é adaptado de uma peça de Marsha Norman, considerada altamente polêmica e impressionante para a época de sua estréia, 1983. Brincando, levou o Pulitzer de melhor drama teatral.

O diretor do filme, Tom Moore, é o mesmo que conduziu a peça ao sucesso nos palcos e concilia muito bem a emoção com a visão estética. Noite De Desamor é um título abrasileirado. O nome original do filme 'Night Mother, é apenas 'Boa Noite, Mãe', o mais triste da história do cinema. A trilha sonora de David Shire é outro mérito do filme, com densos solos de violão ouvidos apenas em momentos necessários.  

Curiosamente, nenhuma das duas atrizes recebeu indicações ao Oscar, motivando a fúria de Anne Bancroft na época, que disparou: 'Eu deveria ter sido indicada apenas por memorizar todas aquelas falas!'

Não só isso, Anne. Você e Sissy mereciam qualquer prêmio por esse filme.  

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Coisas De Adolescente


Se você foi adolescente, deve ter vivido aquela paixonite colegial e teve aquele amigão brother e um outro, que se revelou um baita traíra. Foi vítima da fofoqueira da escola, juntou a galera e foi num puteiro. Que atire a primeira pedra aquele que nunca mentiu para a mãe que estava estudando com os amigos, só pra fumar um cigarrinho com ciência, escondido.

A loira mais sexy e vazia da escola, que ficava com todo mundo, foi o seu sonho de consumo e nesse meio tempo você não percebeu o amor secreto daquela amiga que você tratava feito brotherzão, né?

Se você viveu isso tudo, a sua adolescência foi do caramba e você deveria assistir As Melhores Coisas Do Mundo. Sentar diante da televisão para curtir o novo filme de Laís Bodanzky, mãe do tremendo Bicho De Sete Cabeças, é despertar no coração um facho de nostalgia.

O fumar sem saber só pra fazer um grau, aprender violão para impressionar as meninas, deixar nascer uma nova consciência ao participar do grêmio estudantil, enfim. O roteiro de Luís Bolognesi, adaptado com exatidão dos livros de Gilberto Dimenstein e Heloísa Prieto, defende a nossa melhor época, de fazer escolhas e amargar renúncias, buscando uma nova posição no mundo e amadurecendo do jeito que bem nos agradar.

Os personagens são cheios de doçura e simpatia, escapam do estilo Malhação sempre que respiram realidade e convencem. Francisco Miguez é o protagonista, o Mano, formando uma dobradinha cheia de ternura com Gabriela Rocha, a Carol da galera. Até o Fiuk, defendendo a tragédia inevitável de um emo existencialista, revela-se um ator convincente.

A galera de responsa é encabeçada por Denise Fraga e José Carlos Machado, os pais divorciados que detonam o amadurecimento. Caio Blat e Paulo Vilhena representam em pontinhas os ídolos da adolescência de alguns sonhos inconsequentes daquela época.

Alguns clichês na história são inevitáveis. Nós é que adoramos vivê-los e reprisá-los. É disso que o filme trata. Transformar a realidade e crescer. Observar o mundo agigantando diante do olhar, vencer preconceitos e sobreviver com a cuca boa diante das mudanças, agradáveis ou não.

Something na trilha sonora, uma ou outra pegadinha visual tipo Requiem Para Um Sonho, cortesia de Daniel Rezende, vencedor do BAFTA e montador de Cidade De Deus.

Fazer o quê? A vida e o cinema estão cheios de clichês. O lance é ver ou viver o clichê de forma diferente. It's up to you.

"Dá pra ser feliz depois que a gente cresce. Só é um pouco mais complicado.", profetiza Mano, o nosso herói. Outras coisas aparecem na vida da gente depois que amadurecemos. Mas, algumas das melhores mesmo, a bomba de chocolate da padaria ou um grande amor, vivemos só na adolescência.

Retorne ao ontem, recorde a sua melhor fase com esse filme.
Não dói nada, eu acho.

sábado, 2 de outubro de 2010

Meu primeiro Altman



Se você me conhece profundamente deve saber que eu curto Robert Altman e um dos meus filmes favoritos é Pret-à-PorterEu também adoro Quando os Homens São HomensShort Cuts, Nashville, Assassinato em Gosford Park, Cerimônia De Casamento, A Última Noite e confesso que M*A*S*H não mexe comigo.

Pret-à-Porter foi o meu primeiro Altman, e ajudou a despertar esse tesão incontrolável pela sétima arte, e daí pra frente (ou pra trás e pros lados), descobrir o cinema desse autor americano, é um prazer inenarrável. A turma que viu Short Cuts porquê comprou aquele livro dos 1001 Filmes Para Ver Antes De Morrer, não sabe da missa a metade.

Filme do Altman tem que ter MUITA gente andando pra lá e pra cá, a câmera nem um pouco preocupada. A preocupação é cruzar vidas de forma voyeurística e mesclar histórias. Brincar com a cronologia, criar suspense, eriçar a curiosidade, emocionar, divertir e liberar a imaginação sobre o quê aconteceu com quem.

Isso é Altman. Crítica social e humor negro fazem parte do pacote. É só masturbar os 90% restante do cérebro, que você percebe. Coragem. Não dói nada.

O roteiro do diretor em dobradinha com Barbara Shulgasser, tira a maior onda com a futilidade do mundo fashion e causou comoção com estilistas e modelos na época do lançamento. Toda esse gente sentiu-se ridicularizada com o filme.

Azar o deles, o espírito é esse. O cenário é Paris e o filme foi injustiçado e incompreendido, tal qual Blade Runner e Cidadão Kane. Quem sabe daqui trinta anos, ele vira um clássico indispensável.

O elenco é uma guerra. Sophia Loren, Marcello Mastroianni, Anouk Aimée, Jean-Pierre Cassel, Kim Bassinger, Lauren Bacall, Stephen Rea, Teri Garr, Tracey Ullmann, Sally Kellerman, Linda Hunt, Richard E. Grant, Forrest Whitaker, Rupert Everett, Tim Robbins, Danny Aiello, mais umas duas mil pessoas e a mãe do Badanha amarrada num piano.

Altman homenageia Ontem, Hoje e Amanhã, alguns mistérios risíveis surgem pelo filme, em meio a porres homéricos. A atenção é disputada. Grace Jones canta La Vie En Rose no final. A trilha sonora é cortesia de Michel Legrand. Pra quem curte anorexia, tem um monte de mulher gostosa. Um assassinato aconteceu ou não.

O final desfere um tapa tremendo na falta de criatividade. Nesse meio tempo, alguns personagens podem parecer inúteis em cena, mas são tão engraçadinhos. Como certas pessoas na vida da gente, sabe?

E se você gosta de moda, precisa assistir. São os anos 90 e figuraças como Christian Lacroix, Issey Miyake, Jean-Paul Gaultier, Claude Montana, Thiery Mugler, Sonia Rykiel e Nicola Trussardi aparecem em cena, participando da brincadeira.

A vida alheia está em cena para você acompanhar.
Então, corre e assiste. Caso não goste, pode vomitar lá fora.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Nada de novo no front, mas fácil de assistir



Me agradei do título. Deu impacto, sabe.

Histórias De Amor Duram Apenas 90 Minutos. Tá com uma cara de que vai entrar pra vala cult modernosa, mas eu não ligo. Não tem nada de extraordinário, mas agrada caso você não lembre ou até nem saiba que Woody Allen, Domingos De Oliveira e Alain Resnais já falaram sobre o mesmo assunto.

Caio Blat é o infeliz trintão desocupado cujo grande problema é amadurecer. Escritor frustrado, jamais consegue terminar o livro de sua vida e enquanto isso não acontece, ele devaneia tentando encontrar o significado entre a vida e a arte, fumando e trepando sem parar. Escravo do acaso e rei da filosofia de boteco, ele desenvolve uma neura sem sentido (Ó o Resnais aqui ó) e abraça a causa, deixando a libido tomar conta da valsa na tentativa de amar e ser amado. 

Se uma história de amor dura 90 minutos, fiquei sem saber. O filme tem 98 minutos de sabor urbano e irretocável graças á breguice do personagem e sua confissões mescladas de noir e romantismo. Não faltam conversas sobre arte e piadas literárias. O erotismo está em cena, de altíssima voltagem mas sem descambar pra vulgaridade, pra afirmar que atração intelectual e sexual é basicamente a mesma coisa. Sabe, "Oh, eu gosto de Virginia Woolf..." / "Jura, eu também... então me come!", algo assim. 

O cenário é a Lapa, nascedouro da boemia carioca e lugar perfeito para os devaneios de um gênio incompreendido, outro Casmurro que é corno sem ter certeza e corneia pra fazer a alegria da galera.

A linguagem cinematográfica cativa desde o início, dosando o drama existencial profundo tal qual xícara de cafézinho com a comicidade brasileira honesta e dolorida. É o filme de estréia de Paulo Helm e pra ruim não serve. Se melhorar no próximo, a gente agradece, tá?

Duas mulheres muito gostosas estão em cena. Maria Ribeiro é a esposa emancipada de Caio Blat e a argentina muy guapa Luz Cipriota, falando um português canhestro sem necessidade, é a aventureira Carol, maiores colaboradoras da confusão ideológica disfarçada de tesão excessivo do protagonista. Se nada mais te agradar no filme, Maria e Luz com poucas roupas servem de desculpa pra você fazer farol com a turma do bar dizendo que o filme é imperdível.

Hugo Carvana, mal aproveitado, aparece numa pontinha de humor pastelão. Daniel Dantas é o personagem mais sensato do filme e autor de uma frase marcante: "Problema com mulher é praticamente um pleonasmo!"

Outra que merece destaque é Lucia Bronstein como a piradíssima cheirada, daquelas capazes de morder a testa, que resume toda a confusão numa lição de vida inesquecível: "Sabe qual o melhor remédio? Uma foda! Uma foda bem dada! Uma foda alucinante!"

quinta-feira, 29 de julho de 2010

O que terá acontecido a Teddy Daniels?



Agora eu posso começar um post de maneira chique. Assisti esse filme em Londres, durante minha curta aventura européia. Bancando mais o intérprete do que espectador, o filme acabou no cinema e eu tinha uma conclusão.

Revi o filme em casa na última noite, e tirei duas conclusões, uma sobre o final e outra sobre a graça, o prazer de assistí-lo. Ilha do Medo é um filme aberto, daqueles que você senta num banco de praça com seu melhor amigo, acende um cigarro e pergunta: "Diz aí, Jão, que carai aconteceu com o DiCaprio naquele filme?".

Não é o primeiro e nem será o último a acabar e deixar a gente cheio de dúvidas. Buscar explicações, obter conclusões e afirmar o que realmente aconteceu após duas horas de produção, é procurar defunto onde não tem velório.

Os pseudo-cults formularam teoria, os formadores de opinião pariram a suas. Beleza, tá legal. Mas ninguém é dono da verdade, nem eu. Por isso é que a maioria esqueceu de aproveitar o filme em ritmo de espetáculo, o que ele é, do começo ao fim. Alguns acham que o filme é sobre loucura, outros sobre o medo. Tô na segunda opção. É um filme de terror.

Chique, bem pago e produzido, classudo, mas é terror pra ser consumido pela massa e apreciado com carinho por quem entende do compasso. Não se prova o contrário. Tem sangue, deformidade e até morte de criança, coisa altamente apelativa desde que o mundo é mundo. 

DiCaprio é o herói e sua postura diante das ameaças enfrentadas é a mesma de Jeff Daniels em Aracnofobia, o cara com medo de aranha numa cidade cheia delas.

Pra iluminar e atentar, DiCaprio não fica louco. Ele já é, desde a guerra, desde a morte da esposa. O roteiro faz umas pegadinhas até o fim, pra coisa ficar melhor, mostra o descontrolado buscando controle no olho do furacão. Desejo de vingança se confunde com paranóia, traumas de guerra geram teorias de conspiração, o horror... oh, o horror! Seu personagem vai perdendo a cabeça aos poucos, talvez ele seja até o candidato da Manchúria. E se você não sabe quem é, vai ali no Google que ele já te explica.

Passado o problema, comentar a trama labiríntica e vivaz, é sacanagem. Scorsese fez um filme para impressionar, tão exagerado e charmoso quanto Cabo do Medo. Deixou a dúvida no ar priorizando o texto de Dennis Lehane, como um cagaço final, coisa do gênero terror, fartamente homenageado aqui junto com o noir. Kubrick, Val Lewton e nem mesmo Michael Powell escapou da honraria. 

O cenário é outra atração. Graças ao clima de pavor e a brilhante direção de arte de Dante Ferretti, ele parece abrigar uma ameaça ancestral além dos loucos encarcerados. A música escolhida a dedo, piora a situação. Uma peça de Penderecki (compositor que também estava na trilha sonora de O Exorcista) define toda a ação e marca o ritmo do nervosismo. Ouví-la sem o filme, é pior.  

O elenco vale a espiadela. DiCaprio ainda tem o que melhorar. Ele passa quase o filme todo com cara de constipado, mas volta e meia tem um arroubo de brilho. Mark Ruffalo é o mais acéfalo dos parceiros. As primeiras escolhas de Scorsese para os papéis eram melhores, Robert Downey Jr. e Josh Brolin. Bem melhores.

No jogo de cena, Ben Kingsley dá o tapa e esconde a mão. Max Von Sydow colabora na dobradinha ameaçadora. Os dois estão ótimos. É a dupla "Embrulha e Joga Fora" da vilania. Para os capangas, Scorsese escolheu John Carrol Lynch e Ted Levine, ícone do terror, o Buffalo Bill de O Silêncio dos Inocentes.

Emily Watson pode ser ou não a maluquinha desaparecida, Patricia Clarkson também. Jackie Earle Haley, feio como só ele poderia ser, é a voz da razão. Elias Koteas é o fantasma, assombrando DiCaprio junto com Michelle Wiliams. Robin Bartlett é a paciente nervosa que matou o marido a machadadas. Seu movimento em cena somado ao final do filme, faz parte da minha solução.

A sua, eu gostaria de saber. Você assiste e pensa o que bem quiser. Quem sabe até, a gente conversa sobre o filme, trocamos idéias e rimos após isso tudo.

Só não venha me dizer que você TEM certeza.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

As Mulheres de Fassbinder


LOLA

A minha paixão por Lola é antiga. É um dos primeiros filmes "europeus" que eu assisti na vida, nos idos do VHS. Barbara Sukowa continua arrasando meu coração, assimo como Fassbinder, o diretor da peça e cineasta que eu respeito pra burro, assim como Peckinpah, Kubrick, Fellini, Bergman e companhia. Lola, realizado em 1981, é a segunda parte da trilogia iniciada em 1979 como O Casamento de Maria Braun e finalizada em 82 com O Desespero de Veronika Voss.

Maria, Lola e Veronika são três mulheres diferentes, mas todas viveram na época do pós-guerra, na reconstrução da Alemanha nazista pela mão de Adenauer. E mais importante que isso, todas são divas teutônicas inspiradas nas starletts dos anos 50, dos filmes de Douglas Sirk. Até nisso Fassbinder toma cuidado, homenagear uma época dourada do cinema americano e amargar na crítica social.

O roteiro de Lola é o que melhor representa o período de reconstrução da Alemanha. Até o triângulo amoroso contado aqui gira em torno de negociatas que visam o bem comum.

Barbara Sukowa é Lola, como Marlene Dietrich, e destrói outros corações além do meu. Sua personagem é uma mulher de negócios esperta e calculista, prostituta ambiciosa divivida entre Schukert, um malandro construtor público que superfatura obras e Von Bohn, o novo chefe de departamento que representa o puritanismo. Schukert não quer perder a teta financeira posta em risco com a chegada de Von Bohn e Lola, no meio dos dois, vai dar sua mordida e conseguir a emancipação financeira.

Todos estão dentro de um novo sonho econômico, uma nova Alemanha mais simpática e sem o constrangimento causado pela febre nazista. O povo que perpetra o sofrimento do pós-guerra, faz de tudo para recomeçar, buscando cultura até num puteiro. Os cenários estão sempre em construção, escuta-se o barulho de obras e as paredes estão sempre esburacadas. Até as piranhas do bordel estão preocupadas com investimentos. Os poderosos fazem negociatas em meio a bebedeiras e mulher pelada, deixando claro que se o destino da cidade está em vias de ser resolvido numa casa de rendez-vous, então o serviço público também é uma putaria.

A corrupção e a prostituição caminham de mãos dadas e todo mundo quer o seu 10%.

Tecnicamente Lola é irrepreensível. Fassbinder fazia teatro filmado. Seus atores ensaiavam e a maioria das cenas era feita em tomada única, prova de que ele acreditava no potencial do elenco. A fotografia de Xaver Schwarzenberger marca em cores quentes que beiram a breguice, o perfil dos personagens. Lola tem uma luz rosa, enquanto Von Bohn está sempre em azul.

Barbara Sukowa e Armin Mueller-Stahl brigam seriamente pela atenção em cena.

Mario Adorf é o rotundo Schukert, a melhor coisa do filme. Misto de cafetão e magnata, apaixonado por sua cocota e morrendo de medo de perder a grana. Matthias Fuchs é o vingativo e mal amado Esslin, que joga tudo no ventilador, também na esperança de conseguir o que é seu. Rosel Zech, bem antes de viver Veronika Voss, é a preconceituosa Frau Schukert.

A trilha sonora é de Peer Raben, pra variar. Entre as canções e cenas do filme, duas cantadas por Barbara Sukowa, ficam pra eternidade: a primeira é Am Tag Als Der Regen Kam, no início e pra fechar bonito é The Capri Fisherman, onde Lola, possuída e descoberta, agita o boteco num frenesi de loucura inesquecível.

Matar ou não matar, eis a questão


TEATRO DA MORTE, também conhecido como AS SETE MÁSCARAS DA MORTE

Coloca aí num caldeirão: Shakespeare, sangue, humor negro, Inglaterra e gente feia. Aí chama o Vincent Price pra tocar a festa, reprisando o eterno papel do vingador amargurado que volta para destruir aqueles que lhe passaram a perna. Pronto. É o filme, é uma beleza.

Num arroubo de criatividade, ele agora é um ator shakespereano, o melhor de seu tempo (na sua própria concepção), reduzido a pó de traque por sete críticos teatrais. Crítico não é flor pra se cheirar e Price, faz a alegria dos artistas sacaneados, exterminando todos os seus detritores artísticos, com uma classe de dar inveja até em Jigsaw, o onipresente matador da série Jogos MortaisO charme incorrigível e a voz retumbante, fizeram de Price o vilão que todos adoravam odiar. 

A presença camaleônica permite que ele delicie-se em mil faces e declame Shakespeare alucinadamente entre boas doses de sangue e humor britânico, para fazer a tão sonhada justiça ao eliminar sete críticos impiedosos á risca dos textos do bardo imortal. Ricardo III, Julio César, Cymbeline, Troilus e Créssida, Romeu e Julieta, todos ali, bons motivos para cortar, decapitar, queimar e divertir o público que há de se interessar por algo no filme. O sangue, a palhaçada ou a cultura teatral, é só escolher.  

O elenco de vítimas é memorável, sortido de veteranos do cinema inglês, Jack Hawkins, Michael Hordern, Harry Andrews e Dennis Price. Ian Hendry é a besta que demora a acreditar que Price está botando um fim a bandalheira crítica.

Coral Browne, que casou-se com Vincent Price após as filmagens, protagoniza com o futuro companheiro uma seqüência hilária, onde ele depois de tanta traquinagem, também se passa por homossexual. 

Milo O'Shea é o detetive raivoso, Robert Morley é a bichinha afetada e Diana Rigg, belíssima, é a companheira de maldade.       

Por esse e tantos outros, Price eternizou-se como um dos cavalheiros do horror, um monstro (no sentido literal) tão sagrado quanto Lugosi, Karloff, Cushing e Lee.

E para você, que jamais assistiu um filme de Price, serve de consolo saber que é a voz dele no clipe de Thriller do Michael Jackson?

terça-feira, 20 de julho de 2010

A vida é um laboratório



A MOSCA

Atualização do clássico filme de 58. Sai Vincent Price, entra o nojo e a pústula.

David Cronenberg toca o espetáculo priorizando o suco gástrico. Ele é o mestre melancólico do horror, o barão do sangue e em toda a sua filmografia existem feridas, físicas ou psicológicas, prontas para estourarem na realidade trágica que acomete seus personagens. Cronenberg adora a carne, os machucados, a podridão e o bizarro. Construiu fama chocando a humanidade com seus closes escatológicos nas mazelas da humanidade.

É a realização do pesadelo de Kafka, a verdadeira metamorfose de homem em inseto, da pior maneira, de dentro pra fora lenta e dolorosamente. Ao desafiar a ciência, um pobre homem desce a ribanceira do desespero tomado por uma doença incurável, pior que a morte.

Jeff Golbdlum é o amalucado cientista Seth, que traz na cara a mesma preocupação de qualquer cientista louca de um filme clássico dos anos 50 ou 60: revolucionar a humanidade, impressionar o mundo e a ciência. Para isso, ele constrói a melhor máquina de todos os tempos, a cápsula de teletransporte e como um bom Dr. Frankenstein da nova era, fará de tudo para assegurar a eficiência de seu novo experimento, inclusive a burrice de testar a máquina por risco próprio.

Ele é um caso raro de boa atuação em filme de terror. Atuando com quilos de maquiagem, Jeff carrega o filme a partir do momento que o monstro interior começa a zumbir mais alto. Adquire habilidades especiais, come açúcar desesperadamente e discursa sobre a mudança da carne e o mergulho no lago de plasma. Pele ruim, manchas no corpo, unhas e dentes que caem atestam que algo está errado e já é tarde para reverter a cagada toda.

Caliphora Vomitoria é a mosquinha que condena a vida de Seth. É o erro de cálculo, o acaso obscuro que coloca o povo em risco. Sua presença insignificante altera o curso da história, seus genes fundem-se com o cientista, que acaba bem fundido.

A transformação do homem não em mosca, e sim em aleijão que abandona as camadas de pele para revelar uma confusão genética, ainda é um parágrafo impressionante na história do cinema. Chris Wallas libera sua criatividade em gosmas que explodem por todo o corpo de Seth. Com razão, papou o Oscar de melhor maquiagem.

Geena Davis é a apaixonadíssima Verônica, que disputa com Goldblum o título do pior penteado em cena. Sua passividade diante do apodrecimento do amado é incômoda, mas ela é apenas uma expectadora, voyeur do horror impossibilitada de resolver tamanho calvário. O melodrama romântico entre os dois quase empaca a história. Fora romance e tome-lhe chinelo na nojeira!

John Getz é o corno enfurecido, que tenta atravancar sem sucesso a relação amorosa e acaba literalmente derretido em sua própria ambição. David Cronenberg, perverso que só ele, aparece em cena como o obstetra, numa cena de grande pavor.

Trilha sonora de Howard Shore, outro que como Bernard Herrmann, sabe musicar o suspense.

Grande sucesso comercial na vida de todos os envolvidos, o filme catapultou Cronenberg ao estrelato hollywoodiano e juntou Jeff e Geena, que foram casados por três anos após as filmagens.

E até hoje, Goldblum é lembrado pela galera como "aquele cara da Mosca, sabe?"

Por mais cômica que pareça a idéia, o dinheiro da produção saiu do bolso de Mel Brooks.

A morte tira férias



Noite passada revi Encontro Marcado, um filme de singular importância na minha vida. Me lembra outra época, sem preocupações. Matei aula pra ir ao cinema, muito bem acompanhado de uma moça hoje já casada, pra ver esse filme. Esse e tantos outros, tantas outras aulas perdidas, enfim. Meu passado não vem ao caso, vamos ficar no filme.

Encontro Marcado é um filme de sensibilidade açucarada, pra derrubar diabético. Mas eu gosto. Eu sou brega, curto Flores De Aço, Laços De Ternura, O Campeão e A Cura. Choro até no Romeu e Julieta do Zefirelli e olha que eu nem escrevi ainda sobre Love Affair com o Warren Beatty e a Anette Bening. Nem só de filme europeu, atores mortos e bons roteiros vive um homem. Eis aí meu lado romântico, sonhador. Outono em Nova York e Doce Novembro também me encantam. 
 (Nossa, quantas referências. Um amontoado!)

Por ser um filme de bonitezas, Brad Pitt assume o papel da morte, em férias e cheio de vontade de descobrir qual a graça do nosso mundo. Fazendo-se de morto, mais até do que devia, Brad diverte em cena comendo pasta de amendoim e atrapalhando reuniões empresariais. Nada burra essa morte que escolhe um milionário para ser seu guia em prazeres mundanos, hein?

A segunda e melhor belezura em cena é Claire Forlani, que Brad encaçapa só por achá-la cheirosinha. Ela é mesmo, linda, um estouro. Para agradar as mulheres, é Brad. Para os homens, Claire e sua carinha de humilde. Carinha, corpinho, tudo em cena.

Marcia Gay Harden e Jeffrey Tambor, altamente empenhados, proporcionam o alívio cômico enquanto Jake Weber garante a chatice que todo filme precisa.

O protagonista é o solene Anthony Hopkins que não parece muito á vontade, proferindo monólogos paternalistas para Brad, numa relação agradável de se ver. No fim, a morte percebe que o cotidiano também tem sua graça, e apesar dos pesares, amanhã há de ser outro dia.

Quando o filme começou a ser desenvolvido em 1995, o papel do milionário que ciceroneia a morte estava com o saudoso Christopher Reeve, afastado do projeto por conta de seu trágico acidente.

O visual não deixa barato. Fotografia de Emmanuel Lubezki e trilha sonora de Thomas Newman. Entre as canções, está o mix de What a Wonderful World / Over The Rainbow na voz de Israel Kamakawiwo'ole, ouvida por meio mundo graças ao filme.

A pegadinha moral é a mesma de Perfume de Mulher, também dirigido por Martin Brest, um cara legal que dirigiu Um Tira da Pesada e Fuga á Meia-Noite. A idéia é remake (originalidade) de um filme de 1934, adaptação da peça do italiano Alberto Casella. Depois desse filme, Brest morreu artisticamente ao parir Contato De Risco, o filme que divorciou Jennifer Lopez e Ben Affleck. 

Só pra constar, em toda a graça do filme, uma cena não orna. Alguém lembra do atropelamento do Brad Pitt quando a morte resolve possuir seu corpo para fins tão românticos? Vai ter grosseria assim lá do outro lado da eternidade. 

Noves fora, o filme nas palavras do grande Costinha: "é uma grafinha."