quarta-feira, 3 de novembro de 2010

E o Falcão?



A primeira vez que assisti O Falcão Maltês foi no Corujão, com o nome de Relíquia Macabra. Eu ainda não vivia respirando e comendo cinema, mas achava o máximo ficar acordado até altas horas da madrugada pra ver filme preto e branco.

Lembro de ficar impressionado com a abertura do filme, detalhando em nuances de suspense a história do tal falcão, causando de imediato a paixão pelo objeto,  recheado de pedras preciosas. Hoje, aos vinte e seis anos e trocentas revisões do filme, percebo com alegria e burrice que a trama nunca foi sobre o bendito falcão.

Pra tirar uma onda, a trama cheia de reviravoltas ficaria bonita até numa chamadinha da Sessão da Tarde: 'Um detetive durão e uma galerinha do mal irão aprontar mil confusões para recuperar O Falcão Maltês!'

O desempenho do elenco em criar todos os arquétipos conhecidos de filmes policiais, ultrapassa os níveis do sublime.

Estamos diante da gênese da escória, o nascimento das regras, da trama sem correria e charmosa por unir os personagens entre quatro paredes, proferindo o milagre do verbo e deixando em êxtase os que ouvem suas palavras magnéticas.  

O herói é Humphrey Bogart subindo o degrau de galã para abandonar a carreira de mero coadjuvante. Ele é o detetive hostil e cínico, mandando o passado as favas e nem um pouco preocupado com o futuro. Intimida até os policiais, pois está imaculado diante de toda a sujeira que envolve o seu escritório.

Mary Astor é a paixãozinha do herói. Desbancando Geraldine Fitzgerald, Rita Hayworth, Ingrid Bergman e Olivia De Havilland, considerada por alguns coroa demais para o papel, ela é a mulher com trinta identidades diferentes para esconder a baixaria sob o verniz de recato.

Peter Lorre é o seboso Joel Cairo, um homem que apanha por seus hábitos suspeitos, o maior deles é usar perfume de gardênia nos anos 40. Junto com Mary Astor, ele protagoniza ataques de pelhanca memoráveis quando um resolve alfinetar o lado negro do outro.

Sidney Greenstreet, estreando no cinema aos 62 anos e contratado pela necessidade da produção precisar de alguém muito gordo, é a cabeça (ou seria a barriga?) da organização. É o vilão soturno e educado, cheio de frases de efeito. Um vilão de quadrinhos modernosos é a cara e o corpo de Greenstreet, procura aí pra ver.

Ator de teatro que vivia nervoso nos bastidores com medo de escorregar na atuação, Greenstreet fez bonito e levou uma indicação ao Oscar de coadjuvante em seu primeiro filme. A dobradinha com Peter Lorre, 'chefão rotundo e capanga sinistro', rendeu nove filmes. Os dois estavam juntos em Casablanca infernizando Bogart mais uma vez.  

Ward Bond e Barton MacLane são os meganhas. As meninas do bem são Gladys George como a viúva louca pra passar o rodo no herói e Lee Patrick, a secretária com terceiras intenções. Jerome Cowan é o parceiro que se não morre, não tem história.

O filme de 1941 é a terceira adaptação da Warner do livro de Dashiel Hammett, sempre inconformado com as outras versões incapazes de absorver o seu texto. John Huston, pai da Anjelica, pediu licença ao estúdio, dirigiu seu primeiro filme e roteirizou a obra repetindo frase por frase do livro original, assim como as características físicas e psicológicas de cada personagem, levando Hammett ao delírio com a fidelidade ao texto.

Tecnicamente, é tão divisor de águas quanto Cidadão Kane, rodado na mesma época em outro canto da cidade. Huston também criou movimentos de câmera inovadores, lances de fotografia, subversão de roteiro e copiou de Hitchcock a idéia dos storyboards, delimitando a ação e os movimentos em cena antes das câmeras começarem a funcionar. Rodado em dois meses e com um orçamento ridículo de 300 mil dólares, que talvez justifique a interiorização constante das cenas.

Os historiadores de cinema apontam O Falcão Maltês como o primeiro filme noir da história do cinema americano. Nos anos seguinte, Hollywood foi invadida por clássicos e descartáveis do gênero, cheios de detetives gentis como um tijolo, loiras fatais e tramas mirabolantes que retratavam o submundo dos EUA, latente por conta da depressão. Um novo país era visto nas telas, cheio de gente inescrupulosa querendo defender a caveira e o almoço da pior forma.   

Uma página brilhante da história do cinema, que merece ser apreciada por todos os que pretendem conhecer origens e mergulhar em histórias bem armadas. Uma relíquia não tão macabra assim.

Nenhum comentário: