quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Porradas e Famílias



O Vencedor é um filme com lutas de boxe e por isso não consegue evitar os clichês que regem esse estilo de filme, tão favorito e querido mundo afora. Tudo o que já aprendemos em Rocky e Touro Indomável, surge porque é preciso surgir, não tem outro jeito. No final, entre risos e lágrimas, a mensagem que ecoa é mais velha que a Hebe: persevere, não desista, siga em frente, apanhando e cantando, vença a luta garoto!

Mas, esqueça um pouco o boxe e a mesmice. Ao assistir o filme, preste atenção na rivalidade e camaradagem entre dois irmãos e nas complicadas relações familiares envolvendo duas mulheres, uma realmente apaixonada querendo o melhor para o homem amado e a outra totalmente sem noção, capaz de sufocar aqueles que ama.

É aí que o filme acorda, quando abandona as lutas do ringue e concentra-se nas lutas entre sonhos e desejos. Em ritmo sincopado, a coisa ganha vida e pega fogo, tornando-se atraente e dolorido, emocionante, pra variar.

O protagonista Micky é vivido por Mark Wahlberg, vencendo suas limitações dramáticas ao criar um paradoxo interessante: o homem que ganha dinheiro de uma forma violenta e extremamente passivo em suas atitudes. Silencioso, Wahlberg tenta encontrar limites entre profissão, amor e família, sem trair aos que ama ou a si mesmo.

Família e amor, a força do filme em três atuações hipnotizantes indicadas ao Oscar de coadjuvante desse ano, rivalizando entre socos e atenções, feito uma luta de boxe, com cada ator em seu canto medindo forças.

Melissa Leo, juntamente com Barbara Hershey em Cisne Negro, vem abrilhantar a galeria de mães-monstro do cinema. Fumando feito um dragão e amparada pelas sete filhas estranhas, a mãe empresária crente de que os filhos devem lhe pagar tributo pelo amor pegajoso, não mede esforços e tirania para faturar uns trocados e proteger todos ao seu redor, infernizando em nome do amor maternal.

Amy Adams, esbanjando uma sensualidade até então desconhecida, é Charlene, a garantia do protagonista rumo à liberdade. Garota de faculdade e incompreendida por conta do estilo MTV de vida, que você entenderá a piada apenas ao assistir, ela é a oponente ferrenha da família e acredita que Micky merece coisa bem melhor para o seu futuro.

A façanha maior é do malandro Christian Bale. Repetindo a magreza quase cadavérica de O Operário e acrescentando tiques horrendos de viciado em crack, mordendo a própria testa e a orelha dos outros ao seu redor, Bale grita aos quatro ventos que tem bala na agulha para qualquer mudança física e psicológica que um personagem é capaz de exigir. Ele é Dicky, o filho pródigo e também o favorito, irmão, ídolo e ex-campeão com a certeza de que a glória continua batendo a sua porta.

Batman, John Connor, prisioneiro de guerra do Laos, psicopata americano, Bale é um excelente camaleão do cinema atual. Suas entradas em cena balançam a roseira e cativam com o humor grotesco, os olhos arregalados e o frenesi que denunciam um sério dano neurológico. Na cena final, com Wahlberg num sofá, Bale nem parece Bale, tamanha a mudança.

Christian Bale e Melissa Leo já faturaram o Globo De Ouro e O Vencedor pode virar a grande surpresa da noite do Oscar, se a cerimônia correr em tom de reparação e lembrarmos que Melissa já foi preterida pela Academia De Artes Cinematográficas no soberbo e enervante Rio Congelado

Extrair luz desses personagens medíocres e envolventes, confiando a eles o peso do filme, é o grande mérito do diretor David O. Russell, também indicado ao Oscar, capaz de desviar suas câmeras por um bom tempo do interesse principal, o boxe, para essas criaturas esperançosas de sossego.

Passado nos anos 90, recuperando a época em que a verdadeira história ocorre, do jeito que a massa e a Academia Cinematográfica gostam. O Vencedor passou por uma grande dança de diretores e intérpretes, começando com Martin Scorsese no comando, Brad Pitt e Matt Damon como os dois irmãos, Emily Blunt como Charlene e Lily Tomlin no papel da mãe. Darren Aronofsky também esteve na mira e permaneceu no projeto apenas como produtor.

A veracidade é comprovada pelo apoio da família Ward Eklund, colaboradores do filme e as presenças em cena de Richard Farrell, o documentarista da HBO, o lutador Sugar Ray Leonard e o simpático sparring O’Keefe, personagens da história fora das telas de glória e danação dos irmãos, vistos em plenitude de amor nos créditos finais.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Mais aqui do que além

ALÉM DA VIDA

Aos 80 anos de idade, o velho coiote Clint Eastwood não precisa provar mais nada para ninguém, montado no reconhecimento daqueles que o encaravam apenas como o cowboy durão ou o policial brucutu dos anos 70. Andei lendo algumas besteiras por aí dizendo que apenas nesse filme ele exercita o seu lado dramático. Parece que essa gente nunca assistiu As Pontes De Madison ou Menina De Ouro. De bronco, ele só tem a cara e o background de ex-pistoleiro. Enquanto diretor, Clint sabe lidar muito bem com emoções.    

Seu novo filme é uma história de possibilidades de vida diante de experiências próximas da morte, garantido pela sublime beleza plástica, resultado da habilidade de um excelente realizador, capaz de juntar a fotografia hipnotizante de Tom Stern aos acordes líricos da trilha sonora de sua autoria para aconchegar o roteiro delicado e eficiente de Peter Morgan, mais conhecido por excelentes dramas históricos como O Último Rei Da Escócia, Frost/Nixon e A Rainha.

Morgan, apesar do ceticismo declarado em entrevistas durante a produção do filme, lida com a espiritualidade de maneira contemplativa, questionando o limiar entre vida e morte no desenvolvimento quase onírico do filme em trama fragmentada cheia de coincidências que devem acontecer para impulsionar o interesse nas três visões distintas de pessoas normais, confusas entre a presença da morte e a paixão pela vida. Antes de descobrirem o que os espera no além, os protagonistas tentam enxergar o mundo terreno de outra forma, lutando para fugir da dor e do esquecimento.

O elenco abraça a causa com louvor, contribuindo para o clima lírico e emocionante. Matt Damon consegue superar as atuações de cara dura e cria um personagem atormentado por um dom que mais parece maldição. Cécile De France é a jornalista diante de uma nova realidade ignorada pelo mundo, após sobreviver a um impressionante tsunami na abertura do filme, de fazer inveja a Michael Bay e provando que Clint também sabe lidar com pirotecnia.

Os pequenos britânicos Frankie McLaren e George McLaren revezam-se nas atuações dos gêmeos Marcus e Jason, com as atenções voltadas para Marcus, vítima do luto incessante e da saudade. E sempre que as câmeras do filme passeiam pela Inglaterra, confesso que meu coração vibra de maneira delirante. Também andei pela estação de Charing Cross, onde uma emocionante surpresa aguarda o pequeno Marcus.

No apoio, resta a beleza de Bryce Dallas Howard em  momentos envolventes de romantismo cotidiano, a ganância deslumbrada de Jay Mohr, a participação do grande Derek Jacobi como ele mesmo e uma pontinha de Marthe Keller, musa suíça dos anos 70 vista em obras-primas como Maratona Da Morte, Domingo Negro e Fedora.

Terminado o filme, fica a certeza de que Eastwood, dialogando com a morte está mais preocupado com os vivos. Quando ele direciona suas lentes para um tema tão unânime em sua filmografia, deixando o drama surgir de maneira pacífica, Clint proporciona aos sobreviventes uma certa ânsia amorosa de procurar nessa vida as soluções para os mistérios do além da vida, intrigando os céticos, agradando quem curte as idéias espiritualistas e emocionando meio mundo de leigos.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Pouca grana e muito susto


HALLOWEEN (1978)

Ontem a noite, presenciei uma acalorada discussão sobre os assassinos do cinema americano, os mascarados famosos que trucidaram meio mundo. Falaram apenas de Sexta-Feira 13 e das peripécias de Jason, algumas até copiadas do cinema europeu. Enquanto a galera fervorosa defendia o Jason, de quem sou grande fã também, falei na surdina que um dos meus filmes favoritos desse gênero, do tipo que não assisto a noite juntamente com O Exorcista, é Halloween, dirigido pelo grande John Carpenter em 1978.

Halloween é uma gema do terror que prova como o minimalismo e a sutileza podem ser enervantes graças a engenhosidade dos realizadores. John Carpenter utiliza duas fórmulas imbatíveis de Alfred Hitchcock: levar o perigo para um lugarzinho aparentemente sossegado e intensificar o suspense sem mostrar a bomba explodindo, filmando apenas a caixa com o tic-tac.

É o primeiro filme americano com um assassino mascarado, criador das regras básicas que perduraram até os anos 90 com o ilustre Pânico de Wes Craven: não beba, não trepe, não use drogas e nem saia de qualquer recinto dizendo que volta já. Poucos são aqueles que voltaram em filmes de terror.

Michael Myers é o lunático que matou a irmã na noite de Halloween aos seis anos de idade.  Personificado como o mal inevitável além das fronteiras da normalidade, ele tem em seu encalço o Dr. Loomis, que passou oito anos tentando entender a brutalidade do assassino e mais sete anos, mantendo Myers preso. Agora que o bicho papão escapou, todos os esforços tornam-se pífios para salvar a pacata Haddonfield do perigo iminente.

O rol de vítimas é formado por pessoas comuns e atores desconhecidos para a época. Ninguém comete arroubos dramáticos, conferindo ao filme a veracidade cotidiana destruída lentamente por um monstro humano. Em cena, temos um grupo de adolescentes interessados em curtir a vida, beber e fazer sexo como se não houvesse amanhã. Destoando dos amigos marotos encontra-se a virginal Laurie, obediente, estudiosa e talvez por isso, poupada de levar umas boas facadas. Via de regra, os inocentes conseguem escapar de vez em quando.

No elenco o ator mais conhecido era o veterano Donald Pleasence substituindo duas recusas famosas, de Christopher Lee e Peter Cushing para o papel de mocinho envelhecido. Pleasence imortalizou  o incansável Samuel Loomis, o psiquiatra que não acredita mais nas teorias e carrega um trabuco para curar o seu paciente. Todo bom fã da série sabe que o doutor Loomis perseguiu Myers até o sexto filme, já em cadeira de rodas e não foi visto apenas em Halloween III, o único que curiosamente não tem nada a ver com a saga de Myers. O filme também marca a estréia no cinema de Jamie Lee Curtis no papel da mocinha, uma das famosas rainhas do grito.   

Considerado por muitos O Poderoso Chefão dos filmes de terror, Halloween é implacável e assustador  como o serial killer que parece conduzir a câmera deixando o público na tensão de adivinhar o que vai acontecer a qualquer segundo. Esse voyeurismo incomoda, junto com a rapidez silenciosa do carrasco e sua pesada respiração, transformando o filme numa estranha experiência onde cada segundo contribui para o desespero.

Todos os méritos ficam com o roteiro de  John Carpenter e Debra Hill  que transforma o assassino no elemento principal da história, trabalhando a tensão de maneira sufocante. Enquanto o filme desenrola, é impossível manter qualquer sensação de segurança diante da maldade onipresente de Myers, camaleão mimetizado com o escuro apesar da face inexpressiva de pesadelo, uma simples máscara do capitão Kirk de Star Trek pintada de branco e com cortes nos olhos, réplica do rosto de William Shatner. A figuraça por trás da máscara é Tony Moran, um desconhecido dublê.

Halloween foi feito na raça com míseros 325 mil dólares, arrecadando 47 milhões na semana de estréia nos anos 70, transformando a pequena pérola do terror num dos filmes independentes mais lucrativos e inteligentes da história do cinema e por isso, não conseguiu escapar nem da recente onda de refilmagens.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Abra suas asas


CISNE NEGRO

Analisando a filmografia de Darren Aronofsky, você não encontra nenhum personagem com pensamentos pequenos. Desde PI que ele não é benevolente com as suas criações, despojadas de inocência e sanidade enquanto querem realizar sonhos megalomaníacos sem chance alguma de final feliz.

A obstinada e perturbada da vez é a bela Natalie Portman, realmente sofrendo em muitas cenas e não somente atuando como Nina, a criança enclausurada e solitária que deseja atingir a perfeição após ser nomeada a estrela de uma companhia de balé. Natalie treinou balé por 10 meses e segura o tranco do desafio físico diante das câmeras, levando o filme nas costas enquanto perde a razão tentando encarnar Odette e Odile nos ensaios de O Lago Dos Cisnes.

Esse melodrama passional e sinistro oferece um prisma assustador do treinamento rigoroso e a pressão física e mental do mundo do balé. Quem acha que equilibrar-se na ponta de uma sapatilha é a coisa mais fácil do mundo, provavelmente não entende de balé e nem assistiu Momento de Decisão ou Sapatinhos Vermelhos, um clássico do cinema que apresenta fortes ligações com Cisne Negro.

A rivalidade nos bastidores e a inveja aparecem no caminho da perfeição percorrido por Natalie Portman, disposta a triunfar até mesmo sobre a gravidade na ilusão perfeccionista de superar a própria arte. O que começa como um sonho, vira um pesadelo labiríntico de transformações enlouquecedoras e jogos psicológicos com aparências, semelhanças, reflexos em espelho e duplicidade.

O filme, meio embromado no começo, tem qualquer zona de cansaço compensada no final, a retumbante apresentação de balé almejada o filme todo. É aí que o terror ensaiado meticulosamente pode dar as caras e o filme de lobisomem sem lobisomem, nas palavras do próprio diretor, coloca o monstro diante do público. 

Com o elenco, Aronofsky só confirma a habilidade de arrancar grandes performances femininas. Se restam dúvidas, é só assistir Requiem Para Um Sonho e tentar desgrudar o olhar de Ellen Burstyn como a senhora solitária viciada em anfetaminas. 

Natalie Portman realiza a primeira interpretação doentia de sua carreira. É o cisne indomável, um Jake La Motta do balé. Sua transformação gradativa enquanto é bombardeada com O Lago Dos Cisnes por todos os lados, no toque de celular ou na música da caixinha de jóias, é hipnótica. Natalie perdeu 20 quilos para o papel e já faturou o Globo de Ouro de melhor atriz. Se não levar o Oscar, é milagre, pois a Academia Cinematográfica gosta de atores que cometem atitudes extremas.

Mila Kunis, numa interpretação mediana, é a amiga misteriosa surgida para abrir as asas da liberdade, causando a fenda obscura na personalidade da doce bailarina. Natalie e Mila brindam o público com cenas intrigantes e altamente sensuais.

Vincent Cassel é o Balanchine da vez, um ególatra metido a besta que reinventa um balé clássico, torturando a mocinha ao exigir mais emoção do que técnica. Perdida na lanterna, Wynona Rider é a bailarina velha e preterida.

Roubando a cena, a veterana Barbara Hershey é a mãe protetora, cultivando uma relação incestuosa e dominadora com a filha, que permanece apenas no terreno psicológico. Mãe e filha isoladas num apartamento, lembrando Norman Bates e sua querida progenitora em Psicose, enchem o ar de perguntas. Em certos momentos, você se pergunta qual das duas é a mais perigosa.

As três atrizes são substitutas do time original das escolhas iniciais de Aronofsky. Rachel Weisz deveria ser a bailarina, Jennifer Connelly, a amiga misteriosa e  Meryl Streep era a mãe protetora. Na linha de ideias iniciais, o filme deveria se passar em Budapeste e Paris. A trilha sonora de Clint Mansel é construída nas composições originais de Tchaikovsky para O Lago Dos Cisnes, executadas de forma distorcida.

Graças ao roteiro, as três mulheres em cena realizam automutilações físicas e psicológicas enquanto a bailarina busca a perfeição, a amiga suspeita bota lenha na fogueira e a mãe lamenta os sonhos perdidos. 

E isso tudo, ao mesmo tempo em que é sério, não deixa de ser assustador e emocionante.  


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Todo Amor


IO SONO L'AMORE ou I AM LOVE

Em I Am Love, a performance central de Tilda Swinton é a alma do filme. Com muito mais fúria do que resignação, ela é a mulher com a identidade em conflito, que abdicou de sua origem russa para agir e pensar como matrona italiana com o simples propósito de agradar a família que nem sempre a considerou pertencente deste universo sustentado na fragilidade das aparências.  

Aos poucos, ela racha o mundinho de porcelana em que levita com elegância, quando percebe que desmanchou-se em dedicação e carinho pela família Recchi cuja falsidade elitista não retribuiu todo o amor dedicado.

Emma, sua personagem feita de amor, espera sentimentos arrebatadores, é uma outsider desse universo quadrissecular e lembrando Michelle Pfeiffer em A Época da Inocência, luta para não padecer diante dos códigos de rigor da nobreza.

O arrebatamento tão esperado, é gradativo e silencioso, quando Emma tenta fugir do padrão milenar de salamaleques impostos pela família. Junto com os filhos e entediada de tanto glamour, ela acorda e dá uns tapas na cara dos milionários cheios de manias, confrontados com toda a sorte de verdades e esqueletos saídos do armário.

Para a visão superficialista, o filme pode até parecer um melodrama tolo sobre os terríveis resultados de paixões impossíveis. Mas não é. Não é apenas sobre a alta classe ameaçada pelo mundo real. Em tom operístico e virtuoso, todo um universo de velharias e requinte desmorona com a chegada de novidades inesperadas e abertura de feridas classicistas, sexuais e políticas no cerne de uma família, feito monumental amparado por um grande elenco.

Pippo Delbono é o marido distante que sentirá o peso de um belo par de marfim na cabeça. Alba Rohrwacher é a filha com escolhas sexuais arrasadoras e Flavio Parenti é o filho revolucionário, ambos desejosos assim como a mãe, de começar a vida longe de tradições maniqueístas.

Edoardo Gabbriellini é o jovem cozinheiro, estopim das confusões. Para a abertura do filme e com muita solenidade, o veterano Gabriele Ferzetti é o patriarca que nem imagina o quanto os ventos da mudaça serão capazes de apagar os hieroglifos escritos por sua família num passado distante.

Ao seu lado, Marisa Berenson é a carcereira de filhos, nora e netos. É um prazer imenso curtir a estrela dos clássicos Cabaret e Barry Lyndon, montada em vilania. 

Uma das coisas mais curiosas em assistir I Am Love é esbarrar na beleza atemporal e estranha de um filme surgido em época inoportuna. O filme evoca o desprendimento de velhas tradições dialogando em linguagem antiga e relembrando grandes clássicos do cinema, justificativa plena do seu sucesso mundial.

Na era dos efeitos mirabolantes e pirotecnia, esse retorno as origens hipnotiza desde os créditos de abertura. É cinema puro, literário e emocional, feito no osso do peito e sustentado em emoções verdadeiras. Não deve ser apenas assistido, precisa ser apreciado como um banquete para os sentidos.

Stanley Kubrick e Lucchino Visconti são homenageados nessa devassa das tradições de uma família italiana controladora e dinheirista, isolada numa mansão milanesa em momentos de erupção. O filme também corteja outras grandes famílias italianas que ditaram regras no cinema, como os Salina de O Leopardo e até mesmo os Corleone, em O Poderoso Chefão

I Am Love é um projeto pessoal de Tilda Swinton e do diretor Luca Guadagnino, acalentado durante dez anos e nascido do desejo mútuo de ressuscitar a linguagem clássica da sétima arte, capaz de casar técnica e emoções, para contar uma história cheia de personagens aprisionados e receosos em assumir sua verdadeira postura numa guerra entre tradições e sentimentos.

A precisão do filme é absurda, o que garantiu duas indicações ao vindouro Oscar 2011, nas categorias de melhor filme estrangeiro e nos figurinos de Antonella Cannarozzi. Difícil é explicar a ausência de uma indicação para Tilda Swinton, inglesa até o talo, entregando um papel bilíngue, falando russo e italiano. Não lembraram também da fotografia requintada de Yorick Le Saux, a direção de arte de Francesca Balestra Di Mottola e a trilha sonora grandiosa de John Adams, elementos tão essenciais da história quanto os personagens.

Posso causar uma ponta de inveja ao dizer que assisti esse filme no cinema Curzon em Londres e adorava descer nas estações de metrô e me deparar com o seu imenso pôster. Revisitei o filme na última noite, na paz do meu quarto, com o olhar mais atento e continuo bestificado com a beleza da peça.   

Meio mundo não vai gostar do ritmo pacífico e langoroso, mas quem estiver disposto em perder-se na sedução das imagens e sons, sentir as emoções e apiedar-se de criaturas entediadas tentando fugir de gaiolas de cristal, que infelizmente não aprisionam revoluções e sentimentos honestos, encontrará um filme de rara emoção.

Antes que eu me esqueça, Quentin Tarantino  listou o bendito filme como um dos 20 melhores que ele assistiu em 2010. Já serve de consolo para a massa pseudo-cult.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Som e fúria, cadê?



VOCÊ VAI CONHECER O HOMEM DOS SEUS SONHOS

É só mais um filme mediano sobre as pegadinhas do destino, que andam ditando as regras na atual filmografia européia de Woody Allen. O som e a fúria de Shakespeare citados na abertura não levam a nada, a coisa toda é sobre idiotice mesmo.

Os personagens da vez, junto com outros dos anos 80, estão aporrinhados com suas vidinhas medíocres. Para preencher o assustador vazio existencial, todos cometem loucuras por estranhos sedutores, em busca de felicidade num roteiro carregado de doces metáforas e ausente daquela intelectualidade de boteco tão gostosa.

Aos quarenta minutos de filme, a idealização de um grande amor já rolou barranco abaixo de mãos dadas com o desejo de uma vida cheia de grandes emoções. As qualidades idolatradas viram fumaça quando a rotina toma conta de todos e os pobres mortais batem o carrinho da felicidade no muro da frustração. Quem depositou esperança, terá que se conformar com o que a vida oferece ou fingir que nada aconteceu e embarcar na primeira ilusão que passa, só para seguir em frente.

Nos desacertos do elenco, Naomi Watts e Antonio Banderas ficam em primeiro lugar. Na lanterna, um certo Anthony Hopkins tenta imitar Woody Allen. Quem enche a tela pra valer é Gemma Jones, que encara a realidade sob o prisma de um doce sonho exotérico. 

Rola um romantismo bonito com Josh Brolin e Freida Pinto, o escritor frustrado metido a espertalhão e sua musa delicada. A sensualidade bombástica é o mérito de Lucy Punch, substituindo Nicole Kidman e detentora da honra de ressuscitar a prostituta burra vivida por Mira Sorvino em Poderosa Afrodite pela enésima vez.

Roger Ashton-Griffiths é o galanteador fã de ocultismo e Celia Imrie aparece por alguns minutos, para declarar posteriormente numa entrevista que aceitou a pontinha insignificante só pelo prazer de trabalhar com uma lenda do quilate de Woody Allen.

Pauline Collins inicia uma sucessão de profecias tragicômicas e juntamente com o narrador, manipula o personagem mais instável da história. O título brasileiro quase empata o desenvolvimento, já que todos em cena conhecem estranhos não apenas do sexo masculino.  

Na hora de assistir, vá com calma. Ou você aproveita o humor negro do diretor e tira sarro da desgraça alheia ou fica entristecido com todos os personagens vitimados por suas próprias esperanças. 

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Pura Maldade



NOSFERATU (1979)

Múmias verdadeiras na abertura, morcegos e muita liberdade na hora de refazer um filme referência num país que era pobre nos anos 20 em cineastas por conta do nazismo. Werner Herzog dirigia em 1979 o seu primeiro e último filme de terror custeado por um grande estúdio, tirando inspiração de tudo que é canto.

Segundo ele, não é uma refilmagem. É apenas um reaproveitamento do material, um retorno as origens. Herzog acreditava que todos deveriam honrar suas tradições. Nada mais justo do que repaginar nos anos 70 uma das grandes obras do terror do cinema expressionista alemão dos anos 20.

Renoir para os cenários, Wagner e Gounod na trilha sonora, sem abrir mão da mágica do terror, das regras básicas. Existe uma preocupação tremenda na qualidade da luz, no áudio como forte elemento narrativo e na dor dos personagens que atenua a presença física de algo maligno. A beleza idílica apodrece gradativamente enquanto o vampiro vai tomando conta do destino de cada um.

Raras são as vezes em que o cenário, as paisagens ou a música de Popol Vuh mesclada a árias operísticas, se sobressaem mais que os personagens, sem levar em conta os circos de efeitos especiais da atualidade. 

Klaus Kinski, o melhor inimigo de Herzog, pra variar brigou com meio mundo durante o filme. A única pessoa que Kinski tolerava era o maquiador, com quem passava quatro horas diárias antes de começar as gravações.

Trabalhando com as mãos e uma tristeza gigantesca no rosto, Kinski estiliza a vilania e o amargor. O vampiro é um estandarte de desejos insatisfeitos em busca de sangue e paixão. Está na maior fossa, não pode morrer.

É um ser patético e solitário que deseja mais a partida do que a reencarnação de sua musa, vivida pela deliciosa Isabelle Adjani, enlouquecida pelo vampiro antes mesmo dele aparecer, perfeito contraponto em delicadeza e mágoa diante da feiúra doentia de Kinski. O amor da mocinha não resolve muita coisa. Herzog não dá espaço para a delicadeza ou redenção.

Bruno Ganz é o herói corajoso e descrente, que também será arrebatado pelo apetite incontrolável do conde. Seu personagem em relação ao vampiro lembra Dorian Gray e aos poucos vamos percebendo perto do fim que a caçada ao monstro nada mais é do que uma viagem ao seu interior.

O escritor Roland Topor aparece como o louco gargalhante. Walter Ladengast vive um cansado Van Helsing, detentor de sabedoria que não vence o vampiro, uma interessante perversão do final da história de Bram Stoker.  

Rodado na Holanda, pois a produção não pode entrar na Romênia, que vivia sob a mão de ferro de outro vampiro, o ditador Nicolae Ceausescu.

O Nosferatu de 1922 era uma adaptação não autorizada da obra de Bram Stoker, geradora de uma grande confusão com a viúva de Bram, que mandou destruir quase todas as cópias do filme. Durante a produção, Herzog pediu autorização e restaurou os nomes originais dos personagens conforme a narrativa de Stoker.

Por imposição da Fox, o filme foi rodado simultaneamente em dois idiomas, alemão e inglês. Foi a maior zona, pois alguns atores tinham que ser dublados por americanos. Nosferatu foi um fracasso monumental que empatou a carreira de Herzog em Hollywood.

Os vampiros estavam voltando na época e o filme foi aniquilado graças ao americano Dracula, por John Badham e custeado pela Universal. Frank Langella, Laurence Olivier, Donald Pleasence e Kate Nelligan estavam no elenco amparados por uma dose altíssima de sensualidade. Noves fora, o filme de Badham tem seus méritos.

Mas é difícil não assistir este aqui e tirar Nosferatu da memória. Qualquer um fica bestificado diante da releitura grandiosa feita de um conterrâneo para outro. Herzog pega a obra-prima de Murnau e a intensifica, coloca uma beleza de encher o olhar e parar o coração, com tudo o que possa existir de sinistro, incluindo a dominação total do mal exterior e interior na história.

Adoráveis Intrusos



VIOLÊNCIA E PAIXÃO


Pra começo de conversa, esqueça o título nacional. Gruppo Di Famiglia In um Interno é o nome da obra e traduzindo do italiano seria algo como a família em um cômodo.

A família vista no filme não possui laços sanguíneos. Ela é formada acidentalmente, de maneira invasora.

Burt Lancaster, numa atuação solene e cheia de sensibilidade, é um professor aristocrático, um intelectual ermitão isolado num prédio antigo. Sua vida se resume as intensas paixões vazias por obras de arte, livros e o silêncio.

Um belo dia, a desconhecida Bianca Brumontti vem bater a sua porta querendo alugar o apartamento em cima do seu, como presente para a filha que irá se casar com um jovem rapaz. O professor não quer ser incomodado, deixa bem claro que não tolera outras pessoas ao seu redor, principalmente pessoas tão intragáveis quanto a corte de Bianca Brumontti, formada pela filha, o noivo da moça e o displicente Konrad, gigolô da madame. Mas eles são intoleráveis e insistentes, chatos pra falar a verdade, e a contragosto o professor aceitará os seus novos inquilinos.

Em seu penúltimo filme como diretor, Lucchino Visconti ainda demonstra uma pequena preocupação com o fim da aristocracia da qual ele fazia parte, um mundo de cerimoniais tradicionalistas ruindo com os badalos dos anos 70, onde já não havia mais espaço para as frescuras de intelectuais ranzinzas.

A preocupação maior de Visconti em cena é com a morte e a solidão. O personagem de Burt Lancaster, constantemente assombrado por lembranças de uma vida sem graça e solitária, aceita aquela gente estranha com muita relutância e um afeto parcimonioso e sincero. Ele começa a pesar toda a sua existência e questiona-se constantemente a respeito de emoções que não viveu assim como teme a solidão diante da morte que pode estar próxima. É o momento de decisão da vida do professor, a hora de rever alguns conceitos.

O contraste grosseiro entre a turma de noveau riche do andar superior com a classe quatrocentona do professor é o que move as engrenagens da história. O professor se afeiçoa cada vez mais com aquelas irreverentes figuras, ao ponto de ser visto pelos jovens como um pai. É a chegada, num esporro, de uma família que ele não teve e da qual ele vira conselheiro, expectador e conforto para cada um dos parentes arranjados. Os velhos valores e a rigidez do professor são cada vez mais atropelados pela inquietude dos jovens vizinhos envolvidos em intrigas políticas e bacanais românticos. Os conflitos entre aquelas pessoas são intensos demais para a vida tranqüila e hermética do professor e tudo lhe causa surpresa, fazendo com que ele vire também um administrador da inconseqüência daquela gente que ele considera tão enfadonha, mas não quer jamais que lhe saiam de perto.

A política é tocada de leve na figura do personagem Konrad, vivido por Helmut Berger. Os conflitos entre fascistas e comunistas e a onda de terrorismo político que começava a assolar a Europa, farão parte de uma vida tão sem sal como a do professor.

Há quem diga que a relação entre Konrad e o professor, é um reflexo autobiográfico do verdadeiro romance entre Helmut Berger e Lucchino Visconti, homossexuais assumidos e apaixonados fora das telas. Se existe amor entre os dois, não fica claro e jamais é vulgarizado. O que transparece entre eles é a admiração respeitosa de Konrad pela classe e inteligência do professor, assim como o professor admira Konrad pelo seu heroísmo misterioso e suas inclinações políticas reacionárias.

Esse é o universo dessa família improvisada que mexe com a paz de um velho professor. Ele, tão apaixonado por quadros no estilo conversation pieces, pinturas que mostram famílias em momentos de intimidade, terá direito aos seus momentos familiares mesmo que aos trancos e barrancos.

Junto com Burt Lancaster e Helmut Berger, Silvana Mangano enche de fúria cada minuto onde aparece como Bianca Brumontti. Ela é a contradição ambulante. Muito bem vestida por Piero Tosi, Silvana aparenta ser uma dama de alta classe, mas é uma criatura neurótica e ciumenta que vende uma imagem não condizente com seus modos um tanto desprezíveis. Silvana faria aqui a sua última aparição em filmes antes da morte do filho Federicco, uma dor irreparável que a manteve afastada das telas por 10 anos.

A encantadora Claudia Marsani é Lietta, a doce e carinhosa filha de Bianca que conquista o professor com sua meiguice. Stefano Patrizzi é o noivo insosso e recalcado. Em flashbacks, podemos vislumbrar as belezas inexoráveis de Dominique Sanda como a mãe e Claudia Cardinale como a esposa do professor.

O roteiro intenso de Enrico Medioli e Suso Cecchi D’Amico foi criado como uma peça de teatro, especialmente para que Visconti com a saúde debilitada e preso a uma cadeira de rodas, pudesse dirigir com muita calma dentro de suas limitações.

Talvez seja por isso que o final de muitas coisas, principalmente da vida, fale mais alto por aqui.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Os Caminhões de Stephen King


COMBOIO DO TERROR

Em 1986, Stephen King andava meio emputecido com a qualidade das adaptações de suas obras para o cinema e foi a luta, realizar sua própria obra como diretor.

Loucaço de cocaína na época, vício que admitiu publicamente em entrevistas e já abandonou, King alucinado com a possibilidade de sucesso, amargou diante da crítica e tomou aquele fracasso comercial num filme orçado em 10 milhões, que arrecadou apenas 7,5 milhões, para pagar o almoço da galera.

Comboio Do Terror, junto com King Kong de John Guillermin e Duna, de David Lynch, é um dos famosos responsáveis pela falência passageira do saudoso produtor Dino De Laurentiis. Além da falência da família De Laurentiis, já que o filme foi produzido por Martha, a esposa de Dino, King foi processado na época pelo diretor de fotografia Armando Nanuzzi, que perdeu a visão do olho direito num acidente durante as filmagens, tomando mais um prejuízo de 18 milhões de dólares.

King adaptou um dos seus melhores contos para o cinema e provou que como diretor, é um excelente escritor. A trama não é de se jogar fora, mas o tratamento é equivocado, deixando o filme perdido entre dois gêneros, a comédia e o terror.

E por pior que seja a coisa toda, é difícil perder o interesse na trama, graças ao desespero coletivo dos humanos, as babaquices involuntárias e a despirocância tecnológica provocada pela influência de um cometa na órbita terrestre durante oito dias que enlouquece máquinas, carros e o resto do elenco, que não sabe nem o que fazer direito, num roteiro sem muita coerência e com absurdos deliciosos, que não merecem cobranças, já que é uma história sobre máquinas atacando pessoas.

De cara parece um filme feito com muito empenho e seriedade que virou porcaria acidentalmente, um trash concebido sem querer, riquíssimo em detalhes, violência gratuita e litros de sangue, com morte de criança, coisa que incomodou a censura da época. Da mesma forma que sobra o riso, surge a tensão em algumas situações. Desacertos aos montes, efeitos surpreendentes e outros risíveis, tiros de bazuca e personagens desnecessários transitam pela tela.

King acertou em cheio na trilha sonora, por conta dos seus amigos do AC/DC, que entregaram pérolas como Who Made Who, D.T. e Chase The Ace para o filme. Os integrantes da banda estão em cena, numa lancha na abertura e não são vistos de jeito algum. King também aparece no início como o sujeito destratado por um caixa eletrônico.

Para um filme de exageros, os personagens são construídos na medida certa pelo elenco. Emilio Estevez é o anti-herói, Pat Hingle é o chefe FDP e Laura Harrington é a mocinha sem destino. Ellen McElduff é a garçonete malucona, desesperada o filme todo com os acontecimentos, gritando que as máquinas não podem fazer aquilo com os humanos, pois nós os criamos.

Na esteira do riso, sobram John Short e Yeardley Smith, como o casalzinho apaixonado. Yeardley é a vida por trás da voz de Lisa Simpson e vê-la gritando e berrando como a mais equivocada das scream queen, é um prazer. 

Os monstros do filme são enormes caminhões, carrinhos de sorvete, patrolas e betoneiras, todas descontroladas, comunicando-se em código morse por buzinadas e trabalhando em conjunto. Parecem dinossauros que encurralaram um grupo de bestas num posto de gasolina, premissa utilizada por King em várias de suas histórias sobre isolamento e loucura. No meio dos monstros, um deles merece destaque. O caminhão da fábrica Happy Toyz, com a carantonha do Duende Verde na frente, líder do grupo.

'Na época a minha mente estava dominada pela cocaína e muitas vezes eu nem sabia o que estava fazendo. Se pudesse, dirigia o filme de novo, porém sóbrio.' 
Stephen King


Aproveita a onda momentânea de remakes hollywoodianos, Stephen.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Nostalgia e Baixaria



CRY-BABY

Sátira de costumes bagaceira, o Grease do submundo, cheio de canções adoráveis e personagens ultrajantes, fáceis de se amar á primeira olhada.

Como em A Caldeira do Diabo ou qualquer grande melodrama absurdo dos anos 50, Baltimore está dividida entre os caretas e os arruaceiros. É um choque cultural de gente cheia de traquejo com caipiras roqueiros e defensores de um estilo de vida muito alternativo. Nessa guerra cultural, nasce o amor entre a fofinha Allison, cansada de rapapés e o delinquente Cry-Baby, um affair pronto para abalar todas as estruturas morais e normais de uma pequena cidade. 

O responsável pela festa é o mestre John Waters, trabalhando com um grau aceitável de baixaria para homenagear o cinema e o estilo de vida dos anos 50, com   delinquencia, lágrimas, amores impossíveis, a aurora do rock e piadas deliciosamente cretinas. Apesar do glacê de maluquices, a voz contestadora de Waters, afirma que a burguesia fede, os revolucionários mudarão o mundo e todas as barreiras de preconceito devem ser quebradas. Noves fora, a mesma idéia de Hairspray.  

Cry-Baby é o primeiro filme de John Waters, com um grande estúdio bancando a palhaçada, graças ao sucesso do seu musical anterior Hairspray, de 1988. Seu humor porcalhão está contido, pero no mucho. Waters, conhecido no meio underground, alcançou o sucesso com pérolas como Pink Flamingos, aquele em que o traveco Divine come bosta de cachorro numa cena sem cortes e Desperate Living, filmes que devassam Baltimore e ultrapassam a barreira do trash, tornando-se objeto de culto.  

Nenhuma mulher mata um sujeito sentando a busanfa na cara do infeliz, como em Desperate Living, mas a galhofa encontra um chiqueiro para se esbaldar com a família de Cry-Baby que mora na Riviera caipira, com a avó que trafica armas e vive com um sujeito mais novo, seus amigos arruaceiros, uma hilária sessão de beijos de língua onde a mocinha tem medo de contrair mononucleose e personagens que se não fossem tão comuns ao universo de Waters, poderiam ter saído de um filme de Fellini ou David Lynch. 

O elenco, no ápice do exagero, é formado por um porrilhão de estranhos, como astros do segundo escalão do tempo áureo do cinema, Troy Donahue e Joey Heatherton. Malucos declarados fora das telas também abrilhantam a cena: Ricki Lake, a sequestrada Patty Hearst, o roqueiro Iggy Pop, o superstar de Andy Warhol, Joe Dalessandro e a musa pornô Traci Lords.

Mink Stole, atriz-fetiche do diretor e intérprete das imortais heroínas Connie Marble e Peggy Gravel, está mal aproveitada. Willem Dafoe aparece numa ponta, como o guarda da prisão.

O casalzinho que impulsiona a trama é formado por Amy Locane e Johnny Depp, muito antes do estrelato, como o garoto que chora por um olho só, misto de Elvis e James Dean. Nenhum dos dois canta e Depp é dublado por James Intveld.

Como as avós dos protagonistas, Polly Bergen enverga a tirania dos caretas que acaba amolecida diante do amor da netinha por Cry-Baby, e Susan Tyrell é roqueira, dona de um boteco e negociante de armas.

Robert Tyree faz uma espantosa imitação de Little Richard, sem cantar e a honra de provocar risos frenéticos fica com Kim McGuire, dona de uma das piores caras já vistas num filme, capaz de assustar vaquinhas indefesas e quase matar uma multidão de prisioneiros de susto.

A título de curiosidade, é nesse filme em que Johnny Depp escolhe o seu primeiro roteiro esquisitão para abandonar a imagem de ídolo teen, conquistada no seriado Anjos da Lei. Daí pra frente, Depp especializou-se em papéis estranhos, e alguns chatos pra caramba.

E nessa onda de remakes, Hairspray não escapou. Será que em breve teremos uma nova versão de Cry-Baby?

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Meus amigos, George e Martha



QUEM TEM MEDO DE VIRGINIA WOOLF?

Raro espetáculo do cinema, não é um filme, é um milagre. Deveria ser estudado por qualquer ator iniciante a fim de descobrir o significado verdadeiro das atuações.

Não se consegue escapar da magia que emana da tela causada pelo elenco e pelo texto cortante de Edward Albee, um grande dramaturgo.

A cena em que Elizabeth Taylor come uma coxinha de frango na abertura enquanto discursa sobre um filme de Bette Davis, já virou tema de comunidade no orkut.

Por falar em Taylor, ela e seu marido Richard Burton poucas vezes ousaram trabalhar da forma como aparecem em cena. Eles enchem a cara e brigam por todo o filme, repetindo na tela o que gostavam de fazer na vida real, já que o caso intenso de amor e ódio dos dois é tão conhecido quanto o poder desse filme.

É a primeira direção de Mike Nichols no cinema, que nasceu de quina pra lua, pois começou a carreira em grande estilo, amparado por um quarteto magnífico de atores e a adaptação do texto de Albee feita por Ernest Lehman, um poderoso roteirista de grandes sucessos como Amor Sublime Amor, Intriga Internacional, A Embriaguez do Sucesso e A Noviça Rebelde.

É preciso paciência e nervos de aço para acompanhar o embate na tela, o apocalipse liderado por George e Martha, um casal decrépito e alcoolizado. Sua maior diversão é atacar um ao outro verbalmente, provocar-se mutuamente até os estertores para ver quem será o primeiro a cair. Raramente um derruba o outro, ambos caem juntos e apaixonados. George é um simples professor universitário fatigado e casado com a fútil e brejeira filha do dono da universidade, a escandalosa Martha. Não se sabe há quantos anos eles estão nessa loucura toda, mas uma coisa é certa, eles adoram isso.

Numa das incontáveis farras organizadas pelo pai de Martha entre os funcionários da faculdade, o grosseiro casal fica incumbido de fazer o lado social com Nick, interpretado por um George Segal ainda garotão, o professor recém-chegado.

É a escolha errada de anfitriões. Mas a noite parece não ter fim, e quando um jovem loiro e atlético professor adentrar na casa de George e Martha com sua esposa sem quadris, está armada a confusão. O casalzinho desajeitado são as vítimas perfeitas para o jogo de destruição.

É impossível não se apaixonar pelo clima de fim de festa, cheio de amargor, instaurado pela sublime intensidade do elenco. Toda aquela dor de George e Martha, o medo do jovem professor que sente estar pisando num território perigoso e os pileques memoráveis. Estão todos entediados, parecem gostar de trocar ofensas e cometer aqueles despautérios numa única noite. As esposas parecem aporrinhar os maridos e nem todo mundo fala a mesma linguagem. George e Martha escondem uma dor particular, talvez a promessa de um amor que não foi cumprido, feito de bondade e rancor, a realidade de dois corações cansados que necessitam um do outro para sobreviver.

A violência verbal é cheia de sinceridade e sarcasmo. A vontade de despir-se dos velhos conceitos e disfarces é nítida em George e Martha, que poderiam ser um casal modelo de cultura e refinamento, mas insistem em deixar a civilidade de lado para ensinar uma lição ao jovem casalzinho. Em uma determinada cena, George, completamente aporrinhado e de porre, diz para Nick: “Martha tem 108...anos. Pesa muito mais do que isso.” É o sarcasmo que transita entre a sanidade e a loucura, George e Martha por pouco não arrebentam um a cara do outro. Por pouco.

Todos no elenco e na equipe técnica, sem exceções, dos atores ao diretor de fotografia, foram indicados ao Oscar. Na brincadeira, o filme levou cinco estatuetas. Elizabeth Taylor ganhou o seu segundo Oscar e mais uma cacetada de prêmios de melhor atriz de várias associações de críticos cinematográficos e com razão.

Martha é o seu canto do cisne, a verdadeira megera indomável, uma vilã histórica fomentada com ódio e piedade. Famosa por sua sensualidade, Liz não hesitou em ficar 30 quilos acima do seu peso para dar vida a corpulenta e azucrinante Martha. Sandy Dennis é a esposa caipira do professor galã, premiada como Atriz Coadjuvante já no seu terceiro trabalho no cinema. Os outros prêmios foram para Richard Sylbert pelo cenário, Irene Sharaff pelos figurinos e Haskell Wexler pela fotografia.

Reza a lenda que a peça de Edward Albee foi inspirada no casamento dos boêmios intelectuais Willard Maas e Marie Menken. Willard era professor universitário de literatura e diretor de filmes experimentais underground. Por sinal, era muito amigo de Andy Warhol. Casado com Marie, também diretora de documentários, os dois viveram um casamento tumultuado por conta do ciúme de Willard e da popularidade de Marie. Farristas incansáveis, eram conhecidos por festas eternas e brigas homéricas regadas a altas doses de cana e alguns tapas em drogas.